domingo, 2 de outubro de 2011

26.09.2011 - A Faina Maior



A tradição da pesca do bacalhau em Portugal remete para o século catorze, em que rústicos barcos partiam dos portos e praias rumo às costas britânicas, sob protecção da Coroa Inglesa. Foi aqui, em 1353, com o acordo assinado por D. Pedro, que toda uma cultura piscatória começou a edificar raízes e a fundir-se com a própria cultura nacional. Ao mesmo tempo que, para Sul, se descobriam novas terras, travavam batalhas, e propagava-se a fé, a Noroeste, no seio do segredo de estado, humildes pescadores batalhavam contra intempéries, doenças e frio, para alcançarem o continente que Colombo viria a descobrir, e seus grandes bancos de bacalhau.
A partir daí, foi até à década de 70 que o estandarte português navegou pelos mares do Norte, desafiando fadigas e obstáculos, e fazendo evoluir esta secular arte piscatória.

Antes de mais, para ingressar na campanha, o interessado tinha de passar por um longo processo de consciencialização, ponderação, e conversação familiar, até enfim se decidir a assinar a matrícula, documento estatal a que, a partir desse momento, dominaria o seu destino. Depois disso, esperava-se dolorosamente a partida do barco, concedendo-se os últimos olhares apaixonados, os últimos abraços fraternais, as últimas refeições caseiras, antes de partir para destino desconhecido no que toca ao fim, mas claro no que toca ao sofrimento, à dura lavoura.
Por fim, lá partiam, de Viana do Castelo, Porto, Ílhavo, Aveiro, Figueira da Foz, e tantos outros pequenos portos por essa longa costa. Na praia multiplicavam-se choros, lamentos, enquanto o sacerdote abençoava a partida, e os homens olhavam esperançosos entre o céu, a quem procuravam conforto, e Terra, onde este o abandonava.

Rumavam Noroeste, passando vulgarmente nos Açores, terra de muitos que aí ingressavam, e seguia para o extremo superior do Atlântico, que com as milhas percorridas, revelava cada vez mais o seu agressivo carácter. O ar esfriava, as ondas picavam, e os tripulantes preparavam-se para a tarefa que aí vinha.

Ao aproximarem-se da costa da Terra Nova, chegavam por fim à região do bacalhau, ao Grande Banco do pescado. A técnica de pesca era típica portuguesa, e mantinha-se através dos séculos, contrariando mais tarde os polémicos arrastões, e outras tantas técnicas de pesca industrial e abusadora. A pesca era feita à linha, com iscos que iam desde clam à tão desejada lula. Os homens iam sozinhos em pequenos barcos, de nome dory, que saíam por volta das 4 da manhã, podendo só voltar pela meia-noite. Isolados no mar, com as mãos mostrando calos e sangue ao serem cortadas pelo fio de pesca, pela força do peixe, por vezes a várias dezenas de profundidade. O seu sucesso dependia do peixe que, no final, traziam a bordo, levando-os frequentemente a sobrecarregar os dorys, a afastar-se demasiado, a desafiar os seus próprios limites. No Atlântico Norte, o Mar é uma criatura com a qual ninguém pode contar, e que, especialmente para um homem sozinho, intrépido, pode constituir um obstáculo fatal. A bordo dos dory, não foram poucos os que sobre si viram cair, pesado, o nevoeiro. Em vão tentavam buscar o barco, vislumbrar as velas, berrar por ajuda. Alguns, com sorte, encontravam, outros despedaçavam-se contra o casco de grandes embarcações comerciais, cegas pelo nevoeiro, e outros tantos vagueavam à deriva, por vezes resgatados, por vezes sucumbidos pela fome, sede, ou por uma súbita vaga que para sempre os sepultava nas profundezas.

A bordo, o que faltava de coragem sobrava na carga de trabalho. O peixe era içado com ganchos, e, chegado, passava por uma incansável linha de montagem, onde por dia passavam várias toneladas de peixe. O animal era primeiro escamado, ao que se seguia a remoção da cabeça, o escalar, o retirar da espinha dorsal, e o intenso lavar. No fim, descia para o porão, onde se procedia à dura tarefa da salga. Num ambiente pesado, com escotilha fechada para impedir a entrada da água do mar ou da chuva, o cheiro pestilento do bacalhau que descia misturava-se com o dos homens que empilhavam o peixe, já na sua forma plana e triangular. Era um trabalho duro, mas de perícia e responsabilidade extrema. O sal colocado teria de se encontrar na quantidade certa, de modo a que estivesse suficiente para o peixe não se estragar, e não demasiado para não o queimar. Nas mãos dos salgadores estava a carga de tornar ou não válidas as inúmeras horas de trabalho no exterior.

Em dias de grande incremento de pescado, as horas de descanso dos trabalhadores eram parcas, podendo não chegar a duas, o que, acompanhado da fraca alimentação, dos cheiros das vísceras que apodreciam no fabrico de óleo, e do gélido ar que bombardeava os seus peitos e gargantas, trazia com facilidade o fantasma da doença a bordo. Numa altura em que a assistência médica era praticamente nula, no porão deitavam-se corpos tuberculosos, com pneumonias, gripes, escorbutos e toda uma infinidade de enfermidades. Aqui, morreram muito mais homens que no mar, e, nas costas de erva verde fustigada pelo vento, foram vários os anónimos sofredores que ali foram deixados, num improvisado funeral, no seio das lágrimas dos companheiros, para uma esquecida posteridade.

Contudo, a faina tinha, por obrigação, de continuar, de modo a completar as centenas de toneladas necessárias. Prosseguiam para a Gronelândia, o extremo do Grande Banco, depois de paragens nos portos da Terra Nova, onde o bruto marinheiro se transformava num galã pronto para a diversão fácil, que encontrava nos restaurantes de esquina, com um quarteto de jazz, uma garrafa de gin, e muitas garotas desejosas do amor ocasional. À medida que navegavam, num mar crispado e frequentemente assolado por fortes tempestades, iam surgindo os primeiros indícios da glaciar terra que iam encontrar. Os icebergues cresciam em tamanho, e multiplicavam-se pela superfície das águas até ao horizonte. Aqui, era fundamental a técnica do comandante, ao dirigir a portentosa embarcação pelo labiríntico percurso, tendo chegado a haver barcos, como O Golfinho, que ali naufragaram, destruídos por uma colisão com icebergs. O mar era rasgado por focas, baleias, e, por vezes, ursos polares. Ao chegar a terra, os portugueses eram já acolhidos com a simpatia dos povos autóctones, também hábeis pescadores, de ascendência esquimó. Nas verdejantes terras da Gronelândia, de sinuosos fiordes entrecortados a preto e branco, lançava-se a tripulação nas últimas semanas de faina, conduzindo os dorys através de infindáveis campos de gelo, capturando o bacalhau da Gronelândia, diferente em forma e sabor, e cada vez mais escasso. Era nestas águas que, geralmente, a pesca era mais difícil, mais desafiante, mais perigosa, mas, no fim, o trabalho era recompensado, e o navio completava, com mais ou menos ajuste, a carga desejada.

Em terras portuguesas propagavam-se já os choros, as missas, as rezas. As mulheres, sozinhas, imergiam numa angústia de insegurança, de instabilidade, do medo de poderem ser já viúvas, mães isoladas, desesperadas por vingar na vida. Muitas acorriam às praias, no fim do prazo determinado, esperando a qualquer momento ver a tão desejada silhueta, aquele recortar da linha do horizonte, aquele sorriso a aproximar-se, trazendo os braços em que quer ser abraçada. Podia demorar semanas, ou mesmo meses, até a tão querida tripulação voltar. Aí, os aplausos e alegrias dos que viam os retornados, misturavam-se com os lamentos de louca aflição pela consciência da triste sorte do seu filho, do seu irmão, do seu amor, insubstituível.
A campanha podia estar terminada, mas a vida do marinheiro não se ficava, normalmente, por ali, e no ano seguinte lá regressava à dureza do Mar, vivenciando de novo todos aqueles sofrimentos e privações, sempre ultrapassados com a lembrança da família que tinha de sustentar, com a guerra do Ultramar de que, a certa altura, se conseguiu escapar, ou simplesmente da riqueza pessoal que almejava. Um homem, uma vez iniciado na faina, nunca voltava a ser o mesmo, e todos estes grumetes, pescadores, salgadores, marinheiros, comandantes, e ajudantes de bordo, esquecidos na sua individualidade, constituem hoje uma inquestionável figura heróica comunitária, personificada no pescador de bacalhau, de chapéu e capa impermeável, sozinho a enfrentar o oceano.

12.09.2011 - O Canto dos Gigantes


Imerso no fundo abismo oceânico, num difuso, infinito, tridimensional azul, ecoa vibrantemente um dos mais puros sons que o Homem, até hoje, ouviu. Gigante, majestosa, a baleia lança-se num exercício de canto único, intrigante, surpreendente, que parece ressoar por épocas ancestrais.
A grande maioria das baleias emite sons, entre estalidos, rugidos e ruído constante de baixas frequências, com suposto objectivo de eco-localização, técnica predativa, ou aliciamento reprodutivo. Contudo, de todos estes sons que habitam o oceano, um distingue-se de todos os outros. Um pouco por todo o planeta, a baleia de bossa tem vindo a intrigar cada vez mais investigadores e músicos. Emitindo um som de rara beleza, lança-se durante horas numa série de repetições, respeitando padrões, aspectos rítmicos, consonância tonal e ajuste de timbre. Ao que tudo indica, a baleia de bossa compõe, verdadeiramente, música.
Efectivamente, num estudo realizado por Dario Martinelli, 82% da população inquirida declarou a canção da baleia de bossa como música, contrastando com os 76% obtidos pela “The Shutov Assembly” de Brian Eno, ou com os 6% da “Alan’s Phsychedelic Breakfast” dos britânicos Pink Floyd. Foi o Dr. Roger S Payne, biólogo de Harvard e um dos pioneiros em mergulho com estes animais, que, pela primeira vez em 1971, se dedicou cientificamente à música da baleia de bossa, num artigo publicado pela Science. Neste, identificava uma sequência clara de sons, e uma evolução musical durante a época reprodutiva. É só durante este período do ano, invernal, que a baleia de bossa macho canta verdadeiramente, mas os objectivos de tal canto são ainda hoje inexplicáveis.
Imersa, imóvel, ligeiramente encurvada, a baleia, geralmente solitária, pode estar mais de 23 horas a emitir música, num ininterrupto lamento que viaja, graças à maior propagação do som na água, por vários e vários quilómetros. Pouco perturba o seu estado de quase transe, de profunda introspecção, enquanto divaga por diferentes variações sonoras, por saltos entre oitavas que causam inveja ao melhor instrumentista, e, por vezes, evoluindo na sequência cromática e introduzindo novas sonoridades, causando o efeito referido por Payne. Quando tal acontece, o enigma adensa-se, ao todos os machos num raio de centenas de quilómetros adoptarem esta nova tendência, desde as costas do México ao Alasca. A sua música assume um conceito quase de consciência universal, de ligação espiritual entre todos os indivíduos, exprimindo-se num indecifrável e hipnótico tema.

Já na década de 2000, o professor de filosofia e clarinetista David Rothenberg lançou-se numa arrojada experiência. Em Maui, Hawaii, com o auxílio de um hidrafone e de um emissor aquático, projecta criar encontros musicais inter-espécie, entre uma baleia de bossa e um clarinetista. Os resultados obtidos são surpreendentes. Quatro minutos passados entre Rothenberg começar a tocar para uma baleia que já cantava, dez metros abaixo da superfície, esta começa a acompanhá-lo, lançando-se os dois num extraordinário dueto em improvisação, com o clarinete a tentar soar como uma baleia e, acima de tudo, com a baleia a tentar soar como um clarinete. Por diversas vezes, a baleia acompanhou, alcançou e manteve o mesmo tom, durante quase um minuto, lançando-se depois numa sequência tonal lógica, coincidente com a harmonia tocada. Rothenberg conta ainda que, numa das suas saídas, o assistente técnico lhe pediu para parar de tocar o clarinete, de modo a poder ajustar o equipamento, quando na verdade o clarinete há vários minutos se calara e só se ouvia a baleia, continuando no mesmo timbre do instrumento.

A influência da música da baleia de bossa na música humana tem vindo a demonstrar-se ao longo dos últimos tempo. Ainda este ano, o compositor americano Alexis Kirke concebeu um programa em que, estando um saxofonista real a tocar no centro de uma sala de espectáculos, baleias azuis e de bossa virtuais acompanhavam-no na improvisação, reagindo um ao outro.
No ano de 1980, John Cage colaborava com Terry Riley na peça a que chamaram “Litany for the Whale”, um trabalho de 32 repetições para duas vozes idênticas. Neste, a palavra whale é dissecada, letra por letra, em divagações tonais, numa envolvência clara de resposta, acompanhamento, repetição e desenvolvimento entre as duas vozes, numa clara inspiração no canto da baleia de bossa, com a sua interacção entre indivíduos distantes, cantando para ninguém, para o tempo e para o universo.

Elegantes, magistrais, as baleias vivem num constante bailado tridimensional, lento e gracioso, numa aparente tranquilidade e sensatez, deixando-se levar pelo fluir do oceano, perscrutando as profundezas, o mundo através de gerações. No seu documentário de 2005, Payne compara-as a Deuses. Magnânimas, monumentais, conhecedoras de todos os segredos do Universo, limitam-se a observar, a fazer passar o tempo, e a navegar transcendentalmente através de lençóis de água dimensionais.