domingo, 2 de outubro de 2011

12.09.2011 - O Canto dos Gigantes


Imerso no fundo abismo oceânico, num difuso, infinito, tridimensional azul, ecoa vibrantemente um dos mais puros sons que o Homem, até hoje, ouviu. Gigante, majestosa, a baleia lança-se num exercício de canto único, intrigante, surpreendente, que parece ressoar por épocas ancestrais.
A grande maioria das baleias emite sons, entre estalidos, rugidos e ruído constante de baixas frequências, com suposto objectivo de eco-localização, técnica predativa, ou aliciamento reprodutivo. Contudo, de todos estes sons que habitam o oceano, um distingue-se de todos os outros. Um pouco por todo o planeta, a baleia de bossa tem vindo a intrigar cada vez mais investigadores e músicos. Emitindo um som de rara beleza, lança-se durante horas numa série de repetições, respeitando padrões, aspectos rítmicos, consonância tonal e ajuste de timbre. Ao que tudo indica, a baleia de bossa compõe, verdadeiramente, música.
Efectivamente, num estudo realizado por Dario Martinelli, 82% da população inquirida declarou a canção da baleia de bossa como música, contrastando com os 76% obtidos pela “The Shutov Assembly” de Brian Eno, ou com os 6% da “Alan’s Phsychedelic Breakfast” dos britânicos Pink Floyd. Foi o Dr. Roger S Payne, biólogo de Harvard e um dos pioneiros em mergulho com estes animais, que, pela primeira vez em 1971, se dedicou cientificamente à música da baleia de bossa, num artigo publicado pela Science. Neste, identificava uma sequência clara de sons, e uma evolução musical durante a época reprodutiva. É só durante este período do ano, invernal, que a baleia de bossa macho canta verdadeiramente, mas os objectivos de tal canto são ainda hoje inexplicáveis.
Imersa, imóvel, ligeiramente encurvada, a baleia, geralmente solitária, pode estar mais de 23 horas a emitir música, num ininterrupto lamento que viaja, graças à maior propagação do som na água, por vários e vários quilómetros. Pouco perturba o seu estado de quase transe, de profunda introspecção, enquanto divaga por diferentes variações sonoras, por saltos entre oitavas que causam inveja ao melhor instrumentista, e, por vezes, evoluindo na sequência cromática e introduzindo novas sonoridades, causando o efeito referido por Payne. Quando tal acontece, o enigma adensa-se, ao todos os machos num raio de centenas de quilómetros adoptarem esta nova tendência, desde as costas do México ao Alasca. A sua música assume um conceito quase de consciência universal, de ligação espiritual entre todos os indivíduos, exprimindo-se num indecifrável e hipnótico tema.

Já na década de 2000, o professor de filosofia e clarinetista David Rothenberg lançou-se numa arrojada experiência. Em Maui, Hawaii, com o auxílio de um hidrafone e de um emissor aquático, projecta criar encontros musicais inter-espécie, entre uma baleia de bossa e um clarinetista. Os resultados obtidos são surpreendentes. Quatro minutos passados entre Rothenberg começar a tocar para uma baleia que já cantava, dez metros abaixo da superfície, esta começa a acompanhá-lo, lançando-se os dois num extraordinário dueto em improvisação, com o clarinete a tentar soar como uma baleia e, acima de tudo, com a baleia a tentar soar como um clarinete. Por diversas vezes, a baleia acompanhou, alcançou e manteve o mesmo tom, durante quase um minuto, lançando-se depois numa sequência tonal lógica, coincidente com a harmonia tocada. Rothenberg conta ainda que, numa das suas saídas, o assistente técnico lhe pediu para parar de tocar o clarinete, de modo a poder ajustar o equipamento, quando na verdade o clarinete há vários minutos se calara e só se ouvia a baleia, continuando no mesmo timbre do instrumento.

A influência da música da baleia de bossa na música humana tem vindo a demonstrar-se ao longo dos últimos tempo. Ainda este ano, o compositor americano Alexis Kirke concebeu um programa em que, estando um saxofonista real a tocar no centro de uma sala de espectáculos, baleias azuis e de bossa virtuais acompanhavam-no na improvisação, reagindo um ao outro.
No ano de 1980, John Cage colaborava com Terry Riley na peça a que chamaram “Litany for the Whale”, um trabalho de 32 repetições para duas vozes idênticas. Neste, a palavra whale é dissecada, letra por letra, em divagações tonais, numa envolvência clara de resposta, acompanhamento, repetição e desenvolvimento entre as duas vozes, numa clara inspiração no canto da baleia de bossa, com a sua interacção entre indivíduos distantes, cantando para ninguém, para o tempo e para o universo.

Elegantes, magistrais, as baleias vivem num constante bailado tridimensional, lento e gracioso, numa aparente tranquilidade e sensatez, deixando-se levar pelo fluir do oceano, perscrutando as profundezas, o mundo através de gerações. No seu documentário de 2005, Payne compara-as a Deuses. Magnânimas, monumentais, conhecedoras de todos os segredos do Universo, limitam-se a observar, a fazer passar o tempo, e a navegar transcendentalmente através de lençóis de água dimensionais.

Sem comentários:

Enviar um comentário