quarta-feira, 31 de agosto de 2011

29,08.2011 - África Nossa


Eram praticamente duas as empresas que faziam a carreira Lisboa - África: a Companhia Nacional de Navegação, fundada em 1918 a partir da inicial Empresa Nacional de Navegação, e a Companhia Colonial de Navegação, criada no ano de 1922, ambas em protocolo com o Governo Português. Especializadas em transportes de mercadorias e passageiros, eram várias e portentosas as embarcações sob seu nome. A Nacional, de chaminés pretas, navegava com o Moçambique, o Angola, o Nyassa, e, por sua vez, a Colonial, de chaminés amarelas atravessadas a verde e branco, com o Império, o Pátria e o mal fadado Santa Maria, entre muitos outros. Em 1959 e 1960, as companhias apresentavam as pérolas da navegação nacional. Primeiro, pela Colonial, o Infante Dom Henrique, a maior embarcação da história da marinha mercante portuguesa, com lugar para 1056 passageiros, e mais de 300 tripulantes. Em concorrência directa, a Nacional lançava o Príncipe Perfeito, fino, moderno, inovador, e, embora não tão grande como o seu gémeo colonial, com dimensões suficientes para arrancar suspiros aos que ainda o lembram.

Partia-se de Lisboa. No Cais da Rocha de Conde de Óbidos, ou em Sta Apolónia e Alcântara, a multidão espalhava-se ruidosamente para ver a embarcação. A entrar viam-se velhos e novos, pobres e ricos, todos rumo às oportunidades que as colónias portuguesas ofereciam. Uns lançavam-se ao desafio, outros iam com recomendação de familiares ou amigos, viam-se ainda os soldados, desconhecendo o seu destino, os recém-casados e os recém-formados, engenheiros e médicos em serviço público, altas figuras do Estado ou das Forças Armadas, e os que regressavam da licença graciosa, seis merecidos meses de férias acumuladas. Pela frente, tinham cerca de um mês de viagem, com paragem na Madeira ou Canárias, em Angola, África-do-Sul e, por fim, Moçambique, onde a frota subia até Porto Amélia. Para comprar bilhete, o passageiro pagava ordinariamente 3 contos e 500, mas funcionários públicos tinham viagem oferecida, assim como suas mulheres, mães e irmãs solteiras. Durante os anos em que estariam a largos milhares de quilómetros, haviam de nascer sobrinhos, surgir novos cunhados, ou, sempre pesando na mente de cada um, desaparecer uma alma próxima. Debruçavam-se portanto da varanda, fervorosamente, os que partiam, ansiando descobrir a cara de um irmão, de uma mãe ou de um pai por entre a multidão, eternizada naquele momento de despedida. Pelas caras caíam largos rios de lágrimas, da enorme saudade que já surgia, da dor de deixar para trás a pátria, da aventura que esperava. A própria chaminé, preparando-se para partir, parecia acompanhar o choro num profundo e sonoro lamento. Numa onda de emocionantes aplausos, lá deixava o navio a costa portuguesa, levantava ferros, e deslizava pelo Tejo. Para a frente, África.

A bordo, os passageiros estavam divididos em três classes, e cada uma com espaço próprio. A primeira, o luxo habitual, a segunda, onde se viajava muito bem, e a terceira, que embora estivesse vedada a muito, como a piscina, também não se podia queixar. Já com a chamada terceira S, as coisas não eram assim tão fáceis. Alojados num deque de acesso à carga, uns em camaratas improvisadas, mas outros num mar de colchões no centro, mesmo por baixo da abertura para descarga, coitados quando, ao chegar a um porto, se abriam as portas, e, fosse a que horas fosse, lá tinham de acordar, levantar trapos, e esperar que voltassem a partir. As refeições eram tomadas por classe. O almoço, mais leve e descontraído, e o jantar já mais formal, com as senhoras arranjadas de saia e casaco, orquestra e animação. Durante o dia ou no serão era tempo para jogar-se uma sueca, canasta, o Bingo ou o Totomilhas, em que diariamente se tentava adivinhar as milhas a fazer na próxima jornada. Passavam-se os dias, a ver os peixes voadores, a conversar, a estabelecer novas amizades, ou a aprofundar as que já se levavam. A pouco e pouco passavam as lamentações iniciais, e até se cantava, alegremente. A bordo do Império, em fins da década de 50, um grupo de amigos, orfeonistas, recém-formados em medicina e engenharia, com suas igualmente jovens esposas, entravam na sala de jantar entoando o seu hino, por eles inventado, e fazendo pouco do sotaque nortenho de um deles, para alegria dos restantes tripulantes:

“Somos do barco Império, sim!
Grupo mais jovial e ‘bão’,
Por isso queremos festas
Para alegrar o nosso ‘coraçõ’”

A primeira paragem fazia-se nas Canárias ou na Madeira. Nas primeiras, os tripulantes engendravam esquemas para fazer passar, clandestinamente, os relógios e bonecas vendidos a irrisórios preços naquele porto franco. Dizia-se que alguns relógios eram tão baratos que só traziam mostrador. Já na Madeira, os passageiros atiravam divertidamente moedas ao mar onde, lá em baixo, jovens madeirenses mergulhavam para as apanhar, mostrando depois orgulhosamente o seu prémio à superfície. Levantando âncora, continuavam viagem. Uns voltavam a parar em São Tomé, onde o mar picado assustava os visitantes que regressavam a bordo, ou em Cabo Verde, mas a grande maioria rumava directo a Angola.

Atravessar o Equador era uma festa. Por todo o navio ressoavam bailes, e os próprios passageiros organizavam as suas actividades. Havia quem, num ímpeto carnavalesco, se mascarava de Neptuno e alegrava o convés, e aqueles que passavam pela primeira vez a mítica linha eram submetidos a todo o género de traquinices, acabando inevitavelmente dentro da piscina. Navegando pelo hemisfério norte, a tripulação trajava toda azul-escuro, mas nesse dia de manhã, ao acordarem em pleno hemisfério sul, os passageiros deparavam-se com todos trajando branco, uniforme oficial durante o resto da viagem. A temperatura começava a subir, e o cheiro quente de África começava a dominar a embarcação, já naquele relaxado, feliz e confraternizador ambiente característico das colónias. À noite, eram frequentes os bailes, onde a orquestra de bordo tocava os novos êxitos nacionais, brasileiros e estrangeiros, por entre boleros, swings e animados tangos.

Chegava-se então ao porto de Luanda, ponto final para grande parte dos passageiros. Angola era já terra riquíssima, repleta de explorações de diamante e petróleo, onde a guerra que estalava obrigava muitos dos soldados a abandonar o navio. Também aqui se assistia aos dramas dos casamentos por procuração. Muito felizes iam as noivas, orgulhosas do homem que as esperava no cais, romântico, de braços estendidos, ansiando pela sua bela portuguesinha. Muito olhavam elas para o porto que se aproximava, esperando ver a cara dos seus sonhos, aquela que lhe escrevia palavras doces e enviava belas fotografias, aparecer no meio da multidão quando, afinal, lhes surge uma careca, umas gorduchas bochechas, uns dentes desorientados numa pestilenta boca, ou uma pancita a deslizar pelos calções. Bem tentavam elas, desesperadas, bramindo aos céus, fugir, ficar a bordo, mas meninas, o casamento é sagrado. Igualmente boa era a cara dos maridos que, ao esperar a Mariazita que brincava com eles em criança, e que agora bem crescidinha e formosa havia de estar, vinda da terra lhes saía uma Maria matrona de delineado buço, pronta para afogar o seu querido marido num portentoso abraço.

Largada Angola, aportava-se na cosmopolita Cidade do Cabo, fabulosa povoação entre o mar e a montanha, onde as mais recentes modernices faziam as delícias dos passageiros. Aqui, todos saíam para visitar a metrópole, menos os pobres madeirenses, proibidos por lei de desembarcar. A bordo entravam vários sul-africanos, aproveitando para tirar umas férias pela costa moçambicana, ou apenas visitando as instalações. Elegantes, com as mais actuais toilettes britânicas, desfilavam pelo navio as senhoras sul africanas, que com os seus generosos vestidos quebravam, polémicas mas felizes, todas as restrições de vestuário nos solenes salões. Deixada a costa para trás, chegava a vez do Cabo. Por boas razões lhe dera Bartolomeu Dias o nome de Cabo das Tormentas. “Vai haver baile” dizia um comissário ao mostrar a mobília toda acorrentada ao chão e às paredes. E lá vinha a ondulação diabólica, lateral, num incessante balançar, e se via a escotilha a afundar afundar afundar, e depois a levantar levantar levantar, levando qualquer estômago ao desespero, e qualquer jantar à superfície.

Em noites quentes, era ainda hábito as sessões de cinema ao ar livre, com os sucessos da Milú e do Vasco de Santana a arrancarem gargalhadas, peças dramáticas para despertar a saudade, ou as aplaudidas cenas hollywoodescas por entre passos de dança.

Finalmente, no horizonte desenhavam-se os traços da tão desejada cidade de sonho, Lourenço Marques, a belíssima capital de Moçambique. A longa viagem chegava finalmente ao fim, e a chegada ao porto era um acontecimento. Toda a cidade acorria a ver os barcos. Passo a passo, lidando as pesadas malas que carregavam uma vida inteira, desciam as escadas, encaminhando-se por fim para a terra que os iria acolher, com graça e afecto, e ingressavam na incrível vida colonial. 


Alinhamento:

Maria de Lurdes Resende - Não Quero o Mundo
Alberto Ribeiro - Adeus Lisboa
Frank Sinatra - My Way
Francisco José - Olhos Castanhos
The Platters - Only You

Carlos Gardel - La Cumparsita
Ruy de Mascarenhas - A Noiva
The Beatles - A Taste of Honey
Bing Crosby - King of Jazz
Charles Aznavour - Les Comédiens
Lourenço Marques - João Maria Tudela
Moçambique - João Maria Tudela
Kanimambo - João Maria Tudela

Agradecimentos aos meus avós e às minhas tias Lena e Olga, cuja memória foi ponto de partida e pilar principal na construção desta travessia.




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