quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

10.10.2011 - Os Lusíadas



“Em nome de Deus, amém.

Na era de 1497 mandou el-rei D. Manuel, o primeiro desse nome em Portugal, a descobrir, quatro navios, os quais iam em busca de especiaria; dos quais ia por capitão-mor Vasco da Gama, e dos outros, de um deles, Paulo da Gama, seu irmão, e de outro Nicolau Coelho.”

Quatro eram as embarcações que repousavam naquela manhã do dia 8 de Junho. Cerca de cento e setenta eram os homens. Ao temor da partida, desafiante mergulho no Mar do Destino, levados por correntes onde só Deus reina, afastando-se no tempo e no espaço de uma família que já não sabem bem ser a sua, de uma casa que continuam a alimentar numa ausência etérea, aos portugueses que verdadeiramente se transportam para a desconhecida e monstruosa outra dimensão, somava-se-lhes o peso da mão d’El-Rey Dom Manuel no ombro. Aquele cuja mente assumia o corpo daqueles cento e setenta que partiam, aqueles que ao embarcar na São Rafael, na São Gabriel, na Bérrio ou na São Miguel, deixam de ser homens, indivíduos, e são Portugal, e são vermelho e branco, e a coroa, o orgulho, a Pátria. No leme desta jangada de pedra, deste país viajante, vai a cabeça deste corpo colectivo, de grandes barbas, olhos sábios, experiência, mestria, coragem. Um Homem que sabe pensar, que sabe negociar, que sabe muito bem a sua missão, e nada o impedirá de a concretizar. Ele, um verdadeiro El-Rey deste Portugal, era Vasco da Gama.

Entre choros e lamentos, entre festas e pulos, as quatro naus levam um país que pára naquele instante, que se perde num lapso temporal cuja porta só volta a encontrar aquando do regresso dos heróis. E se eles não regressarem, e se, por obra do diabo, as contas errarem, as previsões falharem, e para sempre no Mar o país que navega se perder, cair no abismo que põe o termo ao Mundo, for devorado pelo azul eterno das águas? Valerá a glória de mandar, a vã cobiça desta vaidade a quem chamamos Fama o risco de perder para sempre um país que a todos pertence? Nas lágrimas das mães que morrem naquele momento, das mulheres que ali enviúvam, nos filhos que se têm como orfãos, estão presentes esses receios, essas mágoas, esses riscos. Portugal saiu do Restelo e lançou-se numa travessia de corda bamba, num jogo com a tesoura que corta o fio da vida, da ténue linha que prende então a Lusitânia.
A bordo, Portugal é esperança, e nada o atemoriza.

“Dura inquietação da alma e da vida
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória Soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!”

“E eu vou, e a luz do gládio dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.”

“Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!"

“Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa -
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp´rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.”

Mas do Horizonte surgia uma negra nuvem, tão grande quanto a visão podia alcançar, e que lenta e pesadamente caminhava em direcção dos navegadores. A nuvem não vinha do céu, nem vinha do Mar, vinha do Espaço, de um Espaço que começava a devorar as naus que nele entrava, transitando para um vortex onde as vagas ribombantes pendiam de fios manobrados por furiosos deuses, onde os trovões surgiam de todas as direcções, e o nevoeiro era preto e espesso, feito de água e cinza, e abria-se com os relâmpagos para mostrar o gigantesco rochedo que defrontava Portugal. O gigantesco rochedo que surgia da nuvem, e que era nuvem carregada, e ventos, e tempestade, e bréu e abismo. E na luz dos relâmpagos viam os marinheiros “morrer com fome os filhos caros”, as suas esposas por cafres violadas, a sua tragédia e fim no mar, “eterna e nova sepultura”, pois este era o fim do Destino tão temido, era o encontro com o limite da humanidade, uma barreira para a divinização, um término numa ousadia e intrepidez que já tinha ido longe de mais, arrastando-os “à côncava do fundo do grande lago da noite cruzando as grades de fogo do Céu e do Inferno até à boca escancarada, esfaimada” daquele Adamastor que lhes perfurava os ossos, que lhes rebentava o peito, e surgia de dentro daqueles olhos baços que viam a negra nuvem, e que criavam o desespero naquele infinito Cabo das Tormentas que não principia nem acaba, e à força quer derrotar o Homem na sua glória, na sua caminhada de ascensão, na sua odisseia para a luz.
Mas a bordo não há marinheiros, há Portugal, e “mais que o monstrengo que lhe a alma teme, manda a vontade que o ata ao leme”.

“Pelejai, verdadeiros Portugueses!”

“Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!”
“Isto, e o mistério de que a noite é o fausto...
Mas súbito, onde o vento ruge,
O relâmpago, farol de Deus, um hausto
Brilha, e o mar scuro struge”

E a luz retorna aos céus, e a calma aos marinheiros, e as vagas deixam de enfurecer os barcos, e os ventos dão lugar à brisa que estende a bandeira vermelha e branca no topo do mastro principal, e anuncia aos céus o nome do herói Portugal.

Com calma continuam a velejar pela costa leste africana, desbravando o conquistado Índico. Sempre avançaram em direcção ao objectivo, e nem as traições e encruzilhadas que entre mouros e indígenas experimentaram, nem o escorbuto e as maleitas que enfraqueciam e desbotavam a bandeira que personificavam, lhes entravou o leme, lhes rompeu as velas, lhes esvaziou o ânimo e vontade.
E assim, com esta calma, começaram a sentir-se enlevados pelo cheiro da Índia, pelo recorte do horizonte, pelo doce e reconfortante fim.

Quando naquele dia de 20 de Maio de 1498 os primeiros raios de Sol banharam a superfície das terras e das águas, fizeram despertar um Mundo Novo, um novo tempo para novos homens.
Estava já quente naquela resplandecente praia de Calecut, com uma leve brisa a estender as velas, a afagar as caras e cabelos dos homens que chegavam, mostrando-lhes o brilho dos olhos. As translúcidas águas eram rasgadas pelos botes que se lançavam ao Mar, sobre rasgos coloridos de peixes e corais. O Sol inundava a Terra com seus fortes raios, recortados nas altas e parcas nuvens, redobrando a auréola que cercava aqueles que chegavam à costa.
Quando o pé de Vasco da Gama desvirginou as alvas areias, não era só o seu peso que sustentava. Aquele pé era Vasco da Gama e Dom Manuel, e os homens que chegaram e os homens que, por obra do Destino, mais cedo partiram, e as famílias que em casa choravam e tentavam viver, e a corte que do seu fado desditava, e o olhar penetrante do Infante Dom Henrique, e a bravura de Dom João Primeiro, e Dom Dinis, o construtor de Naus e Sabedoria, e Nunálvares Pereira, S. Portugal em ser, e o Pai Dom Afonso Henriques, e o Pai do Pai, e o humilde Viriato, a luz que precedeu a madrugada, e Ulisses, o grande criador, e todos os que foram e que haviam de ser.
O peso das centenas de pés que conquistavam a areia era um só gigantesco padrão de sólida pedra, que profundamente gravava o nome e as quinas que no cimo o encabeçavam, as cores da bandeira de Portugal, os nomes do país que conquistou o Mundo, para sempre na História da humanidade.

“Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.”

Alinhamento:

1. Madredeus - Matinal - Existir (1992)
2. Carlos Paredes - Amargura - Antologia: Uma Guitarra com Gente Dentro (2002)
3. Dimitri Schostakovich - IV. Allegro ma non Troppo - 7ª Sinfonia em Dó Menor "Leningrad" (1941)
4. Gustav Mahler - I. Allegro Energico ma non Troppo - 6ª Sinfonia em Lá Menor "Tragische" (1904)
5. Alex North - Spartacus Luve Theme - Spartacus OST (1960)
6. Philip Glass - Closing - Glassworks (1981)
7. Rodrigo Leão - In Memoriam / Odium - Theatrum (1996)


Podcast

03.10.2011 - Por Este Rio Acima


Já estava regressado das Índias e Orientes, em repouso na sua quinta do Pragal, casado e com duas filhas, na casa dos 60 anos quando mergulhou na árdua tarefa de deixar para a posteridade o registo de uma vida que pouco teve de vulgar, e que muito tem, ainda hoje, para ensinar. Em 1578 termina uma obra composta por 226 capítulos que, desde o seu nascimento ao restabelecimento em Portugal, se lança numa fantástica jornada autobiográfica, desafiando preconceitos, ideias e os limites da civilização, num elogiado estilo literário que estimula, prende e honra a leitura.

A vida de Fernão Mendes Pinto é, hoje, a Peregrinação, que a par de parcos documentos que apenas servem para comprovar a sua existência, é o único registo da sua vida, e esta começa precisamente com o início de tudo. Foi num berço de miséria, pobreza e sofrimento que, algures entre 1510 e 1514, à beira do Mondego, em Montemor-o-Velho, nasceu o protagonista desta história. Desde a nascença foi acompanhado por esta ventura negativa, que o havia de acompanhar para o resto da vida. Encaminhado para Lisboa por um tio, para aí servir uma fidalga, lá se manteve por um ano e meio até um sobressalto que lhe pôs a vida em jogo o ter feito embarcar para Setúbal. Na viagem, o barco foi atacado por piratas franceses, tendo o jovem sido feito prisioneiro e maltratado, até que por fim consegui a libertação. Alguns anos depois, após ter sido ainda serviçal forçado da fidalguia setubalense, decide-se a embarcar para a Índia. Assim, aos onze dias do mês de Março do ano de mil quinhentos e trinta e sete, parte deste reino numa armada de cinco naus em direcção ao ambicionado Oriente.

Chegado à Índia, Fernão Mendes Pinto mergulha num sem-fim de aventuras e desventuras, ao longo de 21 anos em que foi “treze vezes cativo, dezassete vendido, nas partes da Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macálçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos confins da Ásia”. Começou como soldado ao serviço da Pátria, cedo assumindo-se como corsário, e acabando pela primeira vez vendido. Daí, foi sucessivamente libertado e aprisionado, tendo desempenhado papéis de criado de fidalgo, soldado, escravo, agente de negócios, pirata dos mares da china, mercador, médico ocasional do rei do Bungo, vagabundo e embaixador. Percorre incansavelmente todo o Mar Oriental, visita incontáveis ilhas, traça relações com reis e rainhas, e cria inimigos entre ricos e pobres. Incorre ainda em aventuras de batalha naval, com o corajoso António Faria, a personificação do herói, que ao mesmo tempo que mostra ser um grande líder, homem de guerra, estratega, denota igualmente traços de sanguinário e pirata. É sob comando de Faria que Fernão Mendes Pinto tenta saquear a o tesouro de 16 túmulos de imperadores chineses, na ilha de Calempui, incursão que acaba por sair frustrada, colocando Fernão nas mãos dos chineses. Destas passou para a dos Tártaros, e acaba por se ver naufragado numa ilha Japonesa, habitada por ricos fidalgos orientais. Graças à cobiça dos portugueses, estes tentam tomar a ilha, num atentado falhado que teve como resultado vários mortos e a expulsão dos restantes. Regressado a Malaca, o eterno peregrino entranha-se na cordilheira himalaica, onde observa atentamente os ritos e costumes, e envolve-se em confrontos, revoltas, traições e guerrilhas, conseguindo milagrosamente escapar numa jangada, e retornar a porto seguro. Daqui navega para Java, viagem atormentada por naufrágios, canibalismo desesperado, e escravidão, até ser resgatado e enviado para o Japão onde, por fim, graças a alguns golpes de sorte, alcança a riqueza ambicionada. Depois de ainda envolvido em missão evangélica na ordem dos jesuítas, cumpre funções como embaixador de vice-rei até, em 1521, retornar à Pátria sentida.

O incansável relato dos acontecimentos no Oriente em Peregrinação é em todos os momentos uma visão pessoal do autor. É Fernão Mendes Pinto quem escreve sobre ele mesmo, e no texto transparece claramente a impressão psicológica do autor face a todo o rol de invulgares experiências por ele vividas. Ao longo dos 21 anos assistiu a assassínios impiedosos, tanto de uma violência extrema como frutos de diabólicos estratagemas, observou traições bélicas e conjugais, viu reinos a cair e outros a formar-se, travou amizades, naufragou, passou fome e sede, e à medida que o peregrino cumpre esta sua demanda, a percepção que transborda das palavras vai se alterando, amadurecendo, crescendo. O narrador não é um simples observador, mas aquele que efectivamente viveu a fundo tudo o que se passou e, com delicados passos, atravessou uma corda suspensa da vida, miraculosamente conseguindo manter-se em pé e nunca resvalando para as profundezas da morte, que constantemente o encarava, assolava, fazia as carnes tremerem-lhe, o medo tomá-lo e o desespero vir ao de cima.

“Conquistar esta gente terra tão alongada da sua pátria dá claramente a entender que deve haver entre eles muita cobiça e pouca justiça. Ao que o velho, que se chamava Raja Benão, respondeu: Assim parece que deve ser, porque homens que por indústria e engenho voam por cima das águas todas por adquirirem o que Deus não deu, ou a pobreza neles é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela negam a Deus e a seus pais.” A sua obra é assim demarcada por uma forte crítica social envolta na fiel descrição do Oriente, sempre incarnada na pessoa do sábio e sofredor oriental, perosnagens reais ou fictícias tomadas pelo escritor como enunciadores de uma mensagem que ele, individualmente, não podia transmitir. Na verdade, e destacando-se das demais obras suas contemporâneas, a Peregrinação figura os portugueses e restantes ocidentais como os tiranos, piratas gananciosos e sanguinários, ávidos de poder e riqueza, que de facto foram nos anos que se seguiram ao estabelecimento das rotas das especiarias, contrastando com a civilização, sabedoria e sensatez dos povos locais. Indirectamente, Fernão Mendes Pinto critica um culto religioso hipócrita, em que os crentes louvam “a Deus depois de fartos, com as mãos alevantadas e com os beiços untados, como homens que lhes parece que basta arreganhar os dentes ao céu sem satisfazer o que têm roubado”, que “confiado(s) em boas palvras gasta(m) a vida em tão más obras”, que com o nome de Deus na boca cometem atrocidades, desfazem aldeias, violam mulheres, saqueiam templos e assassinam impunemente os humildes donos daquela terra.

Há ainda em Peregrinação uma tentativa inovadora de fundir o estilo literário europeu em moldes asiáticos, enredando a narrativa em descrições apaixonantes dessas terras longínquas, e dos povos que a habitam. A civilização que Fernão Mendes Pinto lá encontrou era de tal modo rica no seu modo de olhar o dia a dia, de viver Deus, de conviver, que tentou incorporar este factor exótico como sendo-lhe intrínseco, distanciando-se do ponto de vista turístico adoptado pela literatura três séculos depois. Fernão Mendes Pinto era, ou tentava, ser um deles, que trabalhava a seu lado, batalhava com ou contra eles, recuperara a muralha da china, navegara no Ganges, e orara no Tibete. A sua ligação era tão forte que, através das palavras da sua obra, o ecritor se demarca e inova não só na história da literatura universal, mas muito também na da percepção da igualdade humana.

Não referida em Peregrinação, mas documentada, está a entrada de Fernão Mendes Pinto para a Ordem dos Jesuítas, após a sua rentável estadia no Japão. Foi aí que conheceu e travou amizade com a personalidade irradiante de Francisco Xavier, então envolto em polémicas com os bonzos nipónicos. O carácter único desta Santa individualidade apaixonou o aventureiro, com quem regressou a Malaca, e enquanto este último se encontrava em Goa, já prestes a partir com suas riquezas, recebe a cidade o corpo do apóstolo jesuíta. Fernão Mendes Pinto fica profundamente abalado com a notícia, e decide-se a adiar indefinidamente o seu regresso, doando grande parte da sua riqueza à ordem, e dando início ao projecto de evangelização do Japão. Aqui, demonstrou um intenso fervor religioso, elogiado pelos padres que o acompanhavam ao Geral da Companhia, na altura o próprio Pe. Inácio de Loyola, e constituiu por certo uma experiência que, divergindo por completo de tudo o que houvera feito, o pôs em contacto com outro tipo de realidades, com um sofrimento semelhante ao da sua juventude, com uma proximidade única com Deus, numa relação que o fez mudar muito da concepção de humanidade.

Fernão Mendes Pinto assume-se assim como um verdadeiro anti-herói, o contraste do peito ilustre lusitano de Camões, um homem que desconhecia o conceito de honra, e com facilidade admitia, e sabia, que era a riqueza que o movia nos seus actos, até à entrada na Ordem. Com magníficas descrições, trouxe à Europa seiscentista o relato fiel do Oriente longínquo, dos hábitos e costumes daquelas gentes de que só levemente se falava, das aventuras e desventuras que os seus compatriotas viviam e provocavam. Editada 31 anos depois da sua morte, Peregrinação cedo se disseminou pelo mundo ocidental, sendo traduzida em seis línguas, e atingindo lugar cimeiro nos anais da história da literatura. A veracidade do seu carácter fantástico sempre foi contestada, principalmente porque era útil aos conquistadores desacreditar a crítica, e até fazendo surgir a denominação jocosa de Fernão, mentes? Minto. Contudo, deve estar presente e constituir um orgulho para todos os portugueses a única personalidade deste homem das artes e da guerra, destemido e aguerrido, e beneficiador de uma rara sorte. Um peregrino que fastidiosamente caminhou pelas vicissitudes da vida de cabeça levantada, desafiando o impossível.

Alinhamento:

1. É o Mar que nos Chama
2. Quando às vezes ponho diante dos olhos
 3. O Barco vai de saída
4. Navegar, Navegar
5. Porque não me vês
6. É como um sonho acordado
7. O romance de Diogo Soares
8. Por este rio acima
9. A ilha
10. Olha o Fado
11. Lembra-me um sonho lindo

Todos os temas compostos e interpretados por Fausto Bordalo Dias em Por Este Rio Acima (1984)

Podcast

domingo, 2 de outubro de 2011

26.09.2011 - A Faina Maior



A tradição da pesca do bacalhau em Portugal remete para o século catorze, em que rústicos barcos partiam dos portos e praias rumo às costas britânicas, sob protecção da Coroa Inglesa. Foi aqui, em 1353, com o acordo assinado por D. Pedro, que toda uma cultura piscatória começou a edificar raízes e a fundir-se com a própria cultura nacional. Ao mesmo tempo que, para Sul, se descobriam novas terras, travavam batalhas, e propagava-se a fé, a Noroeste, no seio do segredo de estado, humildes pescadores batalhavam contra intempéries, doenças e frio, para alcançarem o continente que Colombo viria a descobrir, e seus grandes bancos de bacalhau.
A partir daí, foi até à década de 70 que o estandarte português navegou pelos mares do Norte, desafiando fadigas e obstáculos, e fazendo evoluir esta secular arte piscatória.

Antes de mais, para ingressar na campanha, o interessado tinha de passar por um longo processo de consciencialização, ponderação, e conversação familiar, até enfim se decidir a assinar a matrícula, documento estatal a que, a partir desse momento, dominaria o seu destino. Depois disso, esperava-se dolorosamente a partida do barco, concedendo-se os últimos olhares apaixonados, os últimos abraços fraternais, as últimas refeições caseiras, antes de partir para destino desconhecido no que toca ao fim, mas claro no que toca ao sofrimento, à dura lavoura.
Por fim, lá partiam, de Viana do Castelo, Porto, Ílhavo, Aveiro, Figueira da Foz, e tantos outros pequenos portos por essa longa costa. Na praia multiplicavam-se choros, lamentos, enquanto o sacerdote abençoava a partida, e os homens olhavam esperançosos entre o céu, a quem procuravam conforto, e Terra, onde este o abandonava.

Rumavam Noroeste, passando vulgarmente nos Açores, terra de muitos que aí ingressavam, e seguia para o extremo superior do Atlântico, que com as milhas percorridas, revelava cada vez mais o seu agressivo carácter. O ar esfriava, as ondas picavam, e os tripulantes preparavam-se para a tarefa que aí vinha.

Ao aproximarem-se da costa da Terra Nova, chegavam por fim à região do bacalhau, ao Grande Banco do pescado. A técnica de pesca era típica portuguesa, e mantinha-se através dos séculos, contrariando mais tarde os polémicos arrastões, e outras tantas técnicas de pesca industrial e abusadora. A pesca era feita à linha, com iscos que iam desde clam à tão desejada lula. Os homens iam sozinhos em pequenos barcos, de nome dory, que saíam por volta das 4 da manhã, podendo só voltar pela meia-noite. Isolados no mar, com as mãos mostrando calos e sangue ao serem cortadas pelo fio de pesca, pela força do peixe, por vezes a várias dezenas de profundidade. O seu sucesso dependia do peixe que, no final, traziam a bordo, levando-os frequentemente a sobrecarregar os dorys, a afastar-se demasiado, a desafiar os seus próprios limites. No Atlântico Norte, o Mar é uma criatura com a qual ninguém pode contar, e que, especialmente para um homem sozinho, intrépido, pode constituir um obstáculo fatal. A bordo dos dory, não foram poucos os que sobre si viram cair, pesado, o nevoeiro. Em vão tentavam buscar o barco, vislumbrar as velas, berrar por ajuda. Alguns, com sorte, encontravam, outros despedaçavam-se contra o casco de grandes embarcações comerciais, cegas pelo nevoeiro, e outros tantos vagueavam à deriva, por vezes resgatados, por vezes sucumbidos pela fome, sede, ou por uma súbita vaga que para sempre os sepultava nas profundezas.

A bordo, o que faltava de coragem sobrava na carga de trabalho. O peixe era içado com ganchos, e, chegado, passava por uma incansável linha de montagem, onde por dia passavam várias toneladas de peixe. O animal era primeiro escamado, ao que se seguia a remoção da cabeça, o escalar, o retirar da espinha dorsal, e o intenso lavar. No fim, descia para o porão, onde se procedia à dura tarefa da salga. Num ambiente pesado, com escotilha fechada para impedir a entrada da água do mar ou da chuva, o cheiro pestilento do bacalhau que descia misturava-se com o dos homens que empilhavam o peixe, já na sua forma plana e triangular. Era um trabalho duro, mas de perícia e responsabilidade extrema. O sal colocado teria de se encontrar na quantidade certa, de modo a que estivesse suficiente para o peixe não se estragar, e não demasiado para não o queimar. Nas mãos dos salgadores estava a carga de tornar ou não válidas as inúmeras horas de trabalho no exterior.

Em dias de grande incremento de pescado, as horas de descanso dos trabalhadores eram parcas, podendo não chegar a duas, o que, acompanhado da fraca alimentação, dos cheiros das vísceras que apodreciam no fabrico de óleo, e do gélido ar que bombardeava os seus peitos e gargantas, trazia com facilidade o fantasma da doença a bordo. Numa altura em que a assistência médica era praticamente nula, no porão deitavam-se corpos tuberculosos, com pneumonias, gripes, escorbutos e toda uma infinidade de enfermidades. Aqui, morreram muito mais homens que no mar, e, nas costas de erva verde fustigada pelo vento, foram vários os anónimos sofredores que ali foram deixados, num improvisado funeral, no seio das lágrimas dos companheiros, para uma esquecida posteridade.

Contudo, a faina tinha, por obrigação, de continuar, de modo a completar as centenas de toneladas necessárias. Prosseguiam para a Gronelândia, o extremo do Grande Banco, depois de paragens nos portos da Terra Nova, onde o bruto marinheiro se transformava num galã pronto para a diversão fácil, que encontrava nos restaurantes de esquina, com um quarteto de jazz, uma garrafa de gin, e muitas garotas desejosas do amor ocasional. À medida que navegavam, num mar crispado e frequentemente assolado por fortes tempestades, iam surgindo os primeiros indícios da glaciar terra que iam encontrar. Os icebergues cresciam em tamanho, e multiplicavam-se pela superfície das águas até ao horizonte. Aqui, era fundamental a técnica do comandante, ao dirigir a portentosa embarcação pelo labiríntico percurso, tendo chegado a haver barcos, como O Golfinho, que ali naufragaram, destruídos por uma colisão com icebergs. O mar era rasgado por focas, baleias, e, por vezes, ursos polares. Ao chegar a terra, os portugueses eram já acolhidos com a simpatia dos povos autóctones, também hábeis pescadores, de ascendência esquimó. Nas verdejantes terras da Gronelândia, de sinuosos fiordes entrecortados a preto e branco, lançava-se a tripulação nas últimas semanas de faina, conduzindo os dorys através de infindáveis campos de gelo, capturando o bacalhau da Gronelândia, diferente em forma e sabor, e cada vez mais escasso. Era nestas águas que, geralmente, a pesca era mais difícil, mais desafiante, mais perigosa, mas, no fim, o trabalho era recompensado, e o navio completava, com mais ou menos ajuste, a carga desejada.

Em terras portuguesas propagavam-se já os choros, as missas, as rezas. As mulheres, sozinhas, imergiam numa angústia de insegurança, de instabilidade, do medo de poderem ser já viúvas, mães isoladas, desesperadas por vingar na vida. Muitas acorriam às praias, no fim do prazo determinado, esperando a qualquer momento ver a tão desejada silhueta, aquele recortar da linha do horizonte, aquele sorriso a aproximar-se, trazendo os braços em que quer ser abraçada. Podia demorar semanas, ou mesmo meses, até a tão querida tripulação voltar. Aí, os aplausos e alegrias dos que viam os retornados, misturavam-se com os lamentos de louca aflição pela consciência da triste sorte do seu filho, do seu irmão, do seu amor, insubstituível.
A campanha podia estar terminada, mas a vida do marinheiro não se ficava, normalmente, por ali, e no ano seguinte lá regressava à dureza do Mar, vivenciando de novo todos aqueles sofrimentos e privações, sempre ultrapassados com a lembrança da família que tinha de sustentar, com a guerra do Ultramar de que, a certa altura, se conseguiu escapar, ou simplesmente da riqueza pessoal que almejava. Um homem, uma vez iniciado na faina, nunca voltava a ser o mesmo, e todos estes grumetes, pescadores, salgadores, marinheiros, comandantes, e ajudantes de bordo, esquecidos na sua individualidade, constituem hoje uma inquestionável figura heróica comunitária, personificada no pescador de bacalhau, de chapéu e capa impermeável, sozinho a enfrentar o oceano.

12.09.2011 - O Canto dos Gigantes


Imerso no fundo abismo oceânico, num difuso, infinito, tridimensional azul, ecoa vibrantemente um dos mais puros sons que o Homem, até hoje, ouviu. Gigante, majestosa, a baleia lança-se num exercício de canto único, intrigante, surpreendente, que parece ressoar por épocas ancestrais.
A grande maioria das baleias emite sons, entre estalidos, rugidos e ruído constante de baixas frequências, com suposto objectivo de eco-localização, técnica predativa, ou aliciamento reprodutivo. Contudo, de todos estes sons que habitam o oceano, um distingue-se de todos os outros. Um pouco por todo o planeta, a baleia de bossa tem vindo a intrigar cada vez mais investigadores e músicos. Emitindo um som de rara beleza, lança-se durante horas numa série de repetições, respeitando padrões, aspectos rítmicos, consonância tonal e ajuste de timbre. Ao que tudo indica, a baleia de bossa compõe, verdadeiramente, música.
Efectivamente, num estudo realizado por Dario Martinelli, 82% da população inquirida declarou a canção da baleia de bossa como música, contrastando com os 76% obtidos pela “The Shutov Assembly” de Brian Eno, ou com os 6% da “Alan’s Phsychedelic Breakfast” dos britânicos Pink Floyd. Foi o Dr. Roger S Payne, biólogo de Harvard e um dos pioneiros em mergulho com estes animais, que, pela primeira vez em 1971, se dedicou cientificamente à música da baleia de bossa, num artigo publicado pela Science. Neste, identificava uma sequência clara de sons, e uma evolução musical durante a época reprodutiva. É só durante este período do ano, invernal, que a baleia de bossa macho canta verdadeiramente, mas os objectivos de tal canto são ainda hoje inexplicáveis.
Imersa, imóvel, ligeiramente encurvada, a baleia, geralmente solitária, pode estar mais de 23 horas a emitir música, num ininterrupto lamento que viaja, graças à maior propagação do som na água, por vários e vários quilómetros. Pouco perturba o seu estado de quase transe, de profunda introspecção, enquanto divaga por diferentes variações sonoras, por saltos entre oitavas que causam inveja ao melhor instrumentista, e, por vezes, evoluindo na sequência cromática e introduzindo novas sonoridades, causando o efeito referido por Payne. Quando tal acontece, o enigma adensa-se, ao todos os machos num raio de centenas de quilómetros adoptarem esta nova tendência, desde as costas do México ao Alasca. A sua música assume um conceito quase de consciência universal, de ligação espiritual entre todos os indivíduos, exprimindo-se num indecifrável e hipnótico tema.

Já na década de 2000, o professor de filosofia e clarinetista David Rothenberg lançou-se numa arrojada experiência. Em Maui, Hawaii, com o auxílio de um hidrafone e de um emissor aquático, projecta criar encontros musicais inter-espécie, entre uma baleia de bossa e um clarinetista. Os resultados obtidos são surpreendentes. Quatro minutos passados entre Rothenberg começar a tocar para uma baleia que já cantava, dez metros abaixo da superfície, esta começa a acompanhá-lo, lançando-se os dois num extraordinário dueto em improvisação, com o clarinete a tentar soar como uma baleia e, acima de tudo, com a baleia a tentar soar como um clarinete. Por diversas vezes, a baleia acompanhou, alcançou e manteve o mesmo tom, durante quase um minuto, lançando-se depois numa sequência tonal lógica, coincidente com a harmonia tocada. Rothenberg conta ainda que, numa das suas saídas, o assistente técnico lhe pediu para parar de tocar o clarinete, de modo a poder ajustar o equipamento, quando na verdade o clarinete há vários minutos se calara e só se ouvia a baleia, continuando no mesmo timbre do instrumento.

A influência da música da baleia de bossa na música humana tem vindo a demonstrar-se ao longo dos últimos tempo. Ainda este ano, o compositor americano Alexis Kirke concebeu um programa em que, estando um saxofonista real a tocar no centro de uma sala de espectáculos, baleias azuis e de bossa virtuais acompanhavam-no na improvisação, reagindo um ao outro.
No ano de 1980, John Cage colaborava com Terry Riley na peça a que chamaram “Litany for the Whale”, um trabalho de 32 repetições para duas vozes idênticas. Neste, a palavra whale é dissecada, letra por letra, em divagações tonais, numa envolvência clara de resposta, acompanhamento, repetição e desenvolvimento entre as duas vozes, numa clara inspiração no canto da baleia de bossa, com a sua interacção entre indivíduos distantes, cantando para ninguém, para o tempo e para o universo.

Elegantes, magistrais, as baleias vivem num constante bailado tridimensional, lento e gracioso, numa aparente tranquilidade e sensatez, deixando-se levar pelo fluir do oceano, perscrutando as profundezas, o mundo através de gerações. No seu documentário de 2005, Payne compara-as a Deuses. Magnânimas, monumentais, conhecedoras de todos os segredos do Universo, limitam-se a observar, a fazer passar o tempo, e a navegar transcendentalmente através de lençóis de água dimensionais.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

29,08.2011 - África Nossa


Eram praticamente duas as empresas que faziam a carreira Lisboa - África: a Companhia Nacional de Navegação, fundada em 1918 a partir da inicial Empresa Nacional de Navegação, e a Companhia Colonial de Navegação, criada no ano de 1922, ambas em protocolo com o Governo Português. Especializadas em transportes de mercadorias e passageiros, eram várias e portentosas as embarcações sob seu nome. A Nacional, de chaminés pretas, navegava com o Moçambique, o Angola, o Nyassa, e, por sua vez, a Colonial, de chaminés amarelas atravessadas a verde e branco, com o Império, o Pátria e o mal fadado Santa Maria, entre muitos outros. Em 1959 e 1960, as companhias apresentavam as pérolas da navegação nacional. Primeiro, pela Colonial, o Infante Dom Henrique, a maior embarcação da história da marinha mercante portuguesa, com lugar para 1056 passageiros, e mais de 300 tripulantes. Em concorrência directa, a Nacional lançava o Príncipe Perfeito, fino, moderno, inovador, e, embora não tão grande como o seu gémeo colonial, com dimensões suficientes para arrancar suspiros aos que ainda o lembram.

Partia-se de Lisboa. No Cais da Rocha de Conde de Óbidos, ou em Sta Apolónia e Alcântara, a multidão espalhava-se ruidosamente para ver a embarcação. A entrar viam-se velhos e novos, pobres e ricos, todos rumo às oportunidades que as colónias portuguesas ofereciam. Uns lançavam-se ao desafio, outros iam com recomendação de familiares ou amigos, viam-se ainda os soldados, desconhecendo o seu destino, os recém-casados e os recém-formados, engenheiros e médicos em serviço público, altas figuras do Estado ou das Forças Armadas, e os que regressavam da licença graciosa, seis merecidos meses de férias acumuladas. Pela frente, tinham cerca de um mês de viagem, com paragem na Madeira ou Canárias, em Angola, África-do-Sul e, por fim, Moçambique, onde a frota subia até Porto Amélia. Para comprar bilhete, o passageiro pagava ordinariamente 3 contos e 500, mas funcionários públicos tinham viagem oferecida, assim como suas mulheres, mães e irmãs solteiras. Durante os anos em que estariam a largos milhares de quilómetros, haviam de nascer sobrinhos, surgir novos cunhados, ou, sempre pesando na mente de cada um, desaparecer uma alma próxima. Debruçavam-se portanto da varanda, fervorosamente, os que partiam, ansiando descobrir a cara de um irmão, de uma mãe ou de um pai por entre a multidão, eternizada naquele momento de despedida. Pelas caras caíam largos rios de lágrimas, da enorme saudade que já surgia, da dor de deixar para trás a pátria, da aventura que esperava. A própria chaminé, preparando-se para partir, parecia acompanhar o choro num profundo e sonoro lamento. Numa onda de emocionantes aplausos, lá deixava o navio a costa portuguesa, levantava ferros, e deslizava pelo Tejo. Para a frente, África.

A bordo, os passageiros estavam divididos em três classes, e cada uma com espaço próprio. A primeira, o luxo habitual, a segunda, onde se viajava muito bem, e a terceira, que embora estivesse vedada a muito, como a piscina, também não se podia queixar. Já com a chamada terceira S, as coisas não eram assim tão fáceis. Alojados num deque de acesso à carga, uns em camaratas improvisadas, mas outros num mar de colchões no centro, mesmo por baixo da abertura para descarga, coitados quando, ao chegar a um porto, se abriam as portas, e, fosse a que horas fosse, lá tinham de acordar, levantar trapos, e esperar que voltassem a partir. As refeições eram tomadas por classe. O almoço, mais leve e descontraído, e o jantar já mais formal, com as senhoras arranjadas de saia e casaco, orquestra e animação. Durante o dia ou no serão era tempo para jogar-se uma sueca, canasta, o Bingo ou o Totomilhas, em que diariamente se tentava adivinhar as milhas a fazer na próxima jornada. Passavam-se os dias, a ver os peixes voadores, a conversar, a estabelecer novas amizades, ou a aprofundar as que já se levavam. A pouco e pouco passavam as lamentações iniciais, e até se cantava, alegremente. A bordo do Império, em fins da década de 50, um grupo de amigos, orfeonistas, recém-formados em medicina e engenharia, com suas igualmente jovens esposas, entravam na sala de jantar entoando o seu hino, por eles inventado, e fazendo pouco do sotaque nortenho de um deles, para alegria dos restantes tripulantes:

“Somos do barco Império, sim!
Grupo mais jovial e ‘bão’,
Por isso queremos festas
Para alegrar o nosso ‘coraçõ’”

A primeira paragem fazia-se nas Canárias ou na Madeira. Nas primeiras, os tripulantes engendravam esquemas para fazer passar, clandestinamente, os relógios e bonecas vendidos a irrisórios preços naquele porto franco. Dizia-se que alguns relógios eram tão baratos que só traziam mostrador. Já na Madeira, os passageiros atiravam divertidamente moedas ao mar onde, lá em baixo, jovens madeirenses mergulhavam para as apanhar, mostrando depois orgulhosamente o seu prémio à superfície. Levantando âncora, continuavam viagem. Uns voltavam a parar em São Tomé, onde o mar picado assustava os visitantes que regressavam a bordo, ou em Cabo Verde, mas a grande maioria rumava directo a Angola.

Atravessar o Equador era uma festa. Por todo o navio ressoavam bailes, e os próprios passageiros organizavam as suas actividades. Havia quem, num ímpeto carnavalesco, se mascarava de Neptuno e alegrava o convés, e aqueles que passavam pela primeira vez a mítica linha eram submetidos a todo o género de traquinices, acabando inevitavelmente dentro da piscina. Navegando pelo hemisfério norte, a tripulação trajava toda azul-escuro, mas nesse dia de manhã, ao acordarem em pleno hemisfério sul, os passageiros deparavam-se com todos trajando branco, uniforme oficial durante o resto da viagem. A temperatura começava a subir, e o cheiro quente de África começava a dominar a embarcação, já naquele relaxado, feliz e confraternizador ambiente característico das colónias. À noite, eram frequentes os bailes, onde a orquestra de bordo tocava os novos êxitos nacionais, brasileiros e estrangeiros, por entre boleros, swings e animados tangos.

Chegava-se então ao porto de Luanda, ponto final para grande parte dos passageiros. Angola era já terra riquíssima, repleta de explorações de diamante e petróleo, onde a guerra que estalava obrigava muitos dos soldados a abandonar o navio. Também aqui se assistia aos dramas dos casamentos por procuração. Muito felizes iam as noivas, orgulhosas do homem que as esperava no cais, romântico, de braços estendidos, ansiando pela sua bela portuguesinha. Muito olhavam elas para o porto que se aproximava, esperando ver a cara dos seus sonhos, aquela que lhe escrevia palavras doces e enviava belas fotografias, aparecer no meio da multidão quando, afinal, lhes surge uma careca, umas gorduchas bochechas, uns dentes desorientados numa pestilenta boca, ou uma pancita a deslizar pelos calções. Bem tentavam elas, desesperadas, bramindo aos céus, fugir, ficar a bordo, mas meninas, o casamento é sagrado. Igualmente boa era a cara dos maridos que, ao esperar a Mariazita que brincava com eles em criança, e que agora bem crescidinha e formosa havia de estar, vinda da terra lhes saía uma Maria matrona de delineado buço, pronta para afogar o seu querido marido num portentoso abraço.

Largada Angola, aportava-se na cosmopolita Cidade do Cabo, fabulosa povoação entre o mar e a montanha, onde as mais recentes modernices faziam as delícias dos passageiros. Aqui, todos saíam para visitar a metrópole, menos os pobres madeirenses, proibidos por lei de desembarcar. A bordo entravam vários sul-africanos, aproveitando para tirar umas férias pela costa moçambicana, ou apenas visitando as instalações. Elegantes, com as mais actuais toilettes britânicas, desfilavam pelo navio as senhoras sul africanas, que com os seus generosos vestidos quebravam, polémicas mas felizes, todas as restrições de vestuário nos solenes salões. Deixada a costa para trás, chegava a vez do Cabo. Por boas razões lhe dera Bartolomeu Dias o nome de Cabo das Tormentas. “Vai haver baile” dizia um comissário ao mostrar a mobília toda acorrentada ao chão e às paredes. E lá vinha a ondulação diabólica, lateral, num incessante balançar, e se via a escotilha a afundar afundar afundar, e depois a levantar levantar levantar, levando qualquer estômago ao desespero, e qualquer jantar à superfície.

Em noites quentes, era ainda hábito as sessões de cinema ao ar livre, com os sucessos da Milú e do Vasco de Santana a arrancarem gargalhadas, peças dramáticas para despertar a saudade, ou as aplaudidas cenas hollywoodescas por entre passos de dança.

Finalmente, no horizonte desenhavam-se os traços da tão desejada cidade de sonho, Lourenço Marques, a belíssima capital de Moçambique. A longa viagem chegava finalmente ao fim, e a chegada ao porto era um acontecimento. Toda a cidade acorria a ver os barcos. Passo a passo, lidando as pesadas malas que carregavam uma vida inteira, desciam as escadas, encaminhando-se por fim para a terra que os iria acolher, com graça e afecto, e ingressavam na incrível vida colonial. 


Alinhamento:

Maria de Lurdes Resende - Não Quero o Mundo
Alberto Ribeiro - Adeus Lisboa
Frank Sinatra - My Way
Francisco José - Olhos Castanhos
The Platters - Only You

Carlos Gardel - La Cumparsita
Ruy de Mascarenhas - A Noiva
The Beatles - A Taste of Honey
Bing Crosby - King of Jazz
Charles Aznavour - Les Comédiens
Lourenço Marques - João Maria Tudela
Moçambique - João Maria Tudela
Kanimambo - João Maria Tudela

Agradecimentos aos meus avós e às minhas tias Lena e Olga, cuja memória foi ponto de partida e pilar principal na construção desta travessia.




segunda-feira, 22 de agosto de 2011

22.08.2011 - Capitán-General Fernão de Magalhães


Era mero sobresaliente quando, naquela manhã, entrou num dos inúmeros barcos ancorados ao longo do Restelo. Vinha do Norte, sabe-se, e tinha sangue nobre, mas ali era apenas sobresaliente, aquele que tudo tem de fazer a bordo e, por isso, tudo aprende. A armada dirigia-se para a Índia. As naus portuguesas já não partiam rumo ao desconhecido, na ânsia de descobrir, ou em confortável missão de estabelecimento comercial. Naquele Oriente de Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque esperava-os a guerra. Na Batalha de Cananor estreou-se o jovem, presenciando a grande sangrenta batalha colonial, marco na história do Império. Mais tarde, em Singapura, foi responsável por menos trágico desfecho, ao avisar o Capitão da traição malaia. Corajoso, salvou ainda a garganta de Francisco Serrão, amigo de sangue, das cimitarras destes autóctones que, impiedosamente, matavam os desprevenidos portugueses em terra. Ainda naufragou, numa dessas tantas viagens que fez durante a sua estadia por esse extremo imperial. Era humilde sobresaliente, mas nobre, e em vez de embarcar com os restantes notáveis, como merecia por sangue, impõe ficar em terra, com os sobreviventes dispensáveis, obrigando o resgate e evitando motim.
O sobresaliente era já soldado quando regressou à Lisboa imperial, distinta da que deixara há sete anos atrás. Sentia-se um homem estranho, em terra estranha, talvez só pelo simples facto de ser, precisamente, “terra”. O seu corpo ansiava pelo cheiro a maresia, pelo ondular do convés, pelo vento fresco a desfraldar as velas, vogando por entre ilhas e terras virgens, quentes, idílicas. Do Oriente, chegavam-lhe cartas de Serrão, a quem salvara a vida. Depois de um naufrágio, desertara embrenhado num romance índio, no meio das paradisíacas ilhas das Molucas. As Ilhas das Especiarias. O coração da riqueza portuguesa, a pérola do Índico, isoladas em corais e areias no meio do calmo mar. Com o tempo, a cabeça deste soldado, já experiente navegador e cartógrafo, começa a fervilhar. A recusa de El Rey Dom Manuel I em conceder-lhe aumento de esmola e melhor ocupação, para além da concessão do seu serviço a coroa estrangeira, fez com que se embrenhasse ainda mais nos mapas e diários de bordo, nos relatos das tripulações regressadas, e na companhia de Ruy Faleiro, proeminente astrónomo e cosmógrafo. Com ele, traça o plano que, como previa, marcaria nos anais da história o seu nome: Fernão de Magalhães.
Parte então para Espanha, onde no fim de peripécias diplomáticas e comerciais, por entre investidores e Corte, e esquivando os golpes dos espiões portugueses que pretendiam travar a sua intrepidez, este humilde homem vê aprovada a sua hercúlea ambição: alcançar o arquipélago das Molucas por um percurso muito mais curto, a Ocidente, e provar que estava do lado espanhol do Tratado de Tordesilhas, atravessando o novo continente, recém-descoberto por Cristóvão Colombo, num estreito cuja localização só ele e Faleiro sabiam, e em segredo se manteria até à sua descoberta.
Foi constituída uma frota de cinco naus: Trinidad, San António, Concépcion, Victoria e Santiago. Durante dias a fio, Magalhães organizou ele mesmo tudo o que tal missão necessitava, desde cordames, madeira, víveres e tripulação. Tudo era ordenado e minuciosamente verificado pelo Capitán-general português, que tudo fez ao seu alcance para nada se intrometer no seu projecto. Inclusivamente Faleiro, co-autor do plano, devido à sua inexperiência e fervilhante personalidade, foi deixado em terra. Navegariam então quatro naus comandadas por capitães castelhanos, exímios navegadores extremamente chegados ao Rei, que deveriam seguir à risca, segundo supremo comando deste, o Capitán-General Fernão de Magalhães, na sua Trinidad.
Na manhã do dia 10 de Agosto do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo 1519, por entre aplausos da multidão, partiam de Sevilha, Guadalquivir abaixo, as cinco naus, 256 tripulantes. Dia 20 partiam de São Lucar para o Atlântico, confessados, comungados, nunca totalmente preparados para o incerto.

Navegavam, com bom vento, por mares atlânticos conhecidos, com breve paragem em Tenerife, quando, em vez de seguir directo ao Brasil, Magalhães impõe uma continuação da costa africana até à Guiné. Talvez procurasse o barlavento daquelas costas, segredo dos portugueses, ou talvez fugisse da armada que Dom Manuel enviara contra eles. A verdade é que, quando questionado por Juan de Cartagena, segundo homem na hierarquia, alto funcionário da coroa, sobre a mudança de rumo, Magalhães responde-lhe apenas que Cartagena tem de limitar-se a respeitar as suas ordens, sem questionar. O almirante era um homem que não acumulava tensões, nem alimentava falsas cortesias diplomáticas, e vendo oportunidade para testar a obediência de seus colegas espanhóis, não perdeu tempo. No entanto, o vento não surgiu, e nas costas africanas esperavam-nos calmarias, atrasando-os 14 dias. Novamente perguntou Cartagena as razões do português, ao que este retorquiu o mesmo. O castelhano irou-se e, num ímpeto, Magalhães pôs a ferros o mais alto cavalheiro da sua frota. Se as tensões dos ilustres capitães contra o austero, carrancudo, atarracado, autoritário e iletrado português, traidor da sua própria coroa, já não eram poucas quando partiram de Espanha, mais se acentuaram com esta prisão, mas, ao mesmo tempo, sentiram bem o poder da mão do Capitán-General.

Atravessado o Atlântico, avistavam por fim a Nova Terra, a descoberta por Pedro Álvares Cabral, o magnífico ainda inexplorado Brazil. Deslizaram sobre as quase virginais águas da deslumbrante baía do Rio de Janeiro e, aí, no meio de simpáticos índios e luxuriante vegetação, se abasteceram, de víveres e energias, para enfim se lançarem ao desconhecido.
Anos antes, em 1492, Cristóvão Colombo propusera-se a descobrir o caminho a ocidente para a Índia, segundo ele muito mais curto, e, efectivamente, ao fim de pouco mais de um mês da partida de Espanha, alcançava terra. Colombo morreu a pensar que a terra que pisou então era China, e que portanto, a sua missão fora cumprida. No entanto, descobrira afinal um totalmente novo continente, abalando a sociedade da altura, e impondo um novo obstáculo ao caminho ocidental para a Índia. Durante anos, percorreu-se as costas do novo continente,  baptizado América, em busca de uma falha nessa infindável massa de Terra que ligasse às terras das especiarias, mas, até então, a costa americana não apresentava tréguas, e sem ouro já descoberto, sem escravos em condições, e, sobretudo, sem especiarias, era um obstáculo terrivelmente desinteressante. Mas Magalhães guardava um segredo. Num mapa perdido na tesouraria portuguesa, de um tal cartógrafo de nome Martinho da Boémia, e baseado num relato de um alemão anónimo, apontava um estreito até então desconhecido, a 40º de latitude sul.
Saíam então do Brazil apontando para Sul, e cedo entraram por costas quase nunca navegadas. A paisagem começava a alterar-se, abandonando o tropicalismo brasileiro, e os mares agitavam-se ameaçadoramente. Os navios continuavam a rumar Sul, passando cabo atrás de cabo, até que, um dia, perto dos 40º Sul, se deparam com um cabo gigantesco, sem avistamento de margem a Sul. Tudo indicava, era aqui o tão desejado estreito. A tripulação estava feliz e, durante 15 dias, explorou aquela língua de água que parecia não ter fim. Contudo, essa língua estreitava, e as águas adoçavam. O cabo não era um estreito, mas a foz de um rio, aquele que viria a chamar-se Rio da Prata, perfeita ilusão. A armada continuou a rota, e Magalhães manteve-se impávido, mas a insegurança crescia em si. Por esta altura, apercebera-se já que tudo o planeado com Faleiro, que todas as promessas feitas ao Rei, à tripulação, e a si mesmo, e que todos os sacrifícios exigidos, tinham perdido qualquer fundamento. Os navios navegavam para Sul, em direcção a um paso que, ninguém garantia agora, existia. Ainda assim, o português prosseguiu, e, à medida que se aproximava Fevereiro e Março, instalava-se o Inverno no hemisfério sul. Os tripulantes estavam preparados para as paradisíacas Molucas, não para a brisa fria que começava já a correr, e para um mar que se assumia cada vez mais agitado. A costa era incansavelmente explorada, toda a reentrância, todo o cabo ou golfo, esperando a passagem, e dando mostras aos castelhanos da insegurança de Magalhães. Um dia ainda, a Santiago foi, a mando do capitão, explorar mais a Sul, encalhando no meio de uma tempestade. Um par de marinheiros, durante 11 dias, alimentando-se de ervas e raízes, teve de percorrer a pé o caminho até a armada, para avisar os restantes da sua situação. Por fim, em pleno Inverno, Magalhães decide aportar e, aí, parar por dois meses. À baía chamam de São Julião.
Durante este hiato, o Capitão mantinha os tripulantes entretidos com tarefas banais de reparação e abastecimento, dando a ilusão de que partiriam a qualquer momento, mas não conseguia enganar os comandantes espanhóis. Completamente fechado em si, sem poder revelar o seu falhanço por inviabilizar o resto da expedição, recusava-se a pedir-lhes auxílio ou a prestar-lhes declarações sobre o que intentava. Por várias vezes, estes mostraram a Magalhães o seu desagrado até que, por fim, decidem tomar mão na armada. Uma noite, calma e organizadamente, apoderam-se da San António, cujo capitão substituto de Cartagena era português, e retomam a superioridade espanhola na armada. No dia seguinte, o Capitán-General apercebendo-se da traição, tem de decidir entre continuar sozinho, impossível, render-se, significando ser posto a ferros e rebaixado na chegada a Sevilha, ou heróicamente, e sem nenhuma hipótese, oferecer luta aos amotinados. Magalhães empreendeu este projecto, não para falhar, mas para, no máximo, morrer tentando e, assim, decide não se entregar ao delineado destino e virar todas as barreiras. Informando-se que tem apenas a pequena Santiago do seu lado, logo envia um bote com três tripulantes, levando uma carta ao Capitán Luiz de Mendonza, a bordo do Victoria. Estes não desconfiam de um ataque de tão poucos homens, e à nau não amotinada, e deixam-nos entrar. Ao entregar a carta a Mendonza, o enviado desfere um golpe de adaga no pescoço do capitão, e os outros dois revelam as armas que traziam escondidas. Abordam então mais 15 homens da Santiago, de surpresa e, de um rompante, tomam o navio. Em poucas horas, o Destino rodou por duas vezes na Armada das Molucas, e Magalhães tomava de novo o seu poder. Gaspar de Quesada, capitão e principal incitador da revolta, foi degolado e esquartejado, e Cartagena, bem como um capelão, deixados em terra. Antes de partir de São Julião, houve ainda tempo para contacto com os estranhos indígenas que apareceram na praia. Eram autênticos gigantes, chegando-lhes os marinheiros à cintura, e nus, pintavam o corpo de branco e a cara de um vermelho vivo, com um coração branco nas bochechas. O tamanho dos seus pés era de tal modo impressionante que o povo foi baptizado “Patagão”, e a zona “Patagónia”. Os índios eram amistosos, e para além de carne e fruta, ofereceram-lhes as peles de alpaca, lanudas, imprescindíveis para sobreviver ao gélido clima. Antes de partir de São Julião, a tripulação aprisionou trabalhosamente dois pobres índios, como amostra para El Rey. Agrilhoados, foram levados da sua terra e família, fechados num bafiento porão, mal-alimentados, e esperando lentamente a morte.
Continuavam as naus a rumar Sul, e à direita começavam a aparecer os cumes nevados, numa austera paisagem preta e branca, de parca vegetação, reino do glaciar. Nos ilhéus, amontoavam-se lobos-marinhos, e curiosos gansos gordos, pretos e brancos, que não voavam e faziam as delícias dos esfomeados marinheiros, a que posteriormente haviam de chamar pinguins. Pesadas neblinas cercavam os navios, o Sol raramente aparecia, e o cinzento agreste mar não facilitava a vida a bordo. Fustigada pelos cortantes ventos, a armada continuava, e só já o capitán-general mantinha alguma esperança em encontrar o “paso” escondido. Mas, logo após nova paragem por dois intermináveis meses, poucos graus a Sul, eis que surge um novo amplo golfo. Os ânimos levantam-se, e logo se enviam duas naus a explorar este bem aparecido canal. Voltam maravilhados. A água continua salgada, e a terra não se estreita. Será que é desta que, por fim, a frota alcança o que ambicionava? Por entre vagas, avança, cheia de mestria, pelo perigoso canal, que se estende por várias milhas. Numa bifurcação, a San António regressa à revelia para Espanha, sem nada avisar, e levando consigo a grande maioria das provisões. Mas a vitória parece eminente e as embarcações continuam. A paisagem vai melhorando gradualmente. Dos dois lados, imponentes fiordes emergiam da densa névoa, mostrando ocasionais cumes brancos, e agressivos penhascos que mergulhavam nas águas. Nas margens, aparecia mais vegetação, casualmente entrecortada por cascatas, fontes, pequenos prados,  enormes fogueiras indígenas, responsáveis pelo nome de Terra do Fogo, e uma gigantesca carcaça de baleia estendida na praia.
Por fim, o estreito alarga. Numa explosão sentimental a bordo, a tripulação vê o que nunca acreditou verdadeiramente, ver alguma vez na sua curta vida. O Novo Mar, estendido até ao infinito, esperando por ser rasgado pela primeira vez. Pela cara de Fernão de Magalhães, escorrem cristalinas lágrimas. Acabara de alcançar a imortalidade.

No dia 22 de Novembro de 1520, a Armada de Fernão de Magalhães deslizava em águas virgens, num Mar nunca dantes navegado, desconhecido da humanidade. O vento sopra favorável, a temperatura melhora, e os marinheiros vivem uns dias felizes, com os luxos e a riqueza das Molucas na mente, e perscrutando o horizonte, ansiando vê-lo rasgado pela terra desejada.
Mas os dias vão passando, o Sol põe-se e nasce incontavelmente, e as ilhas teimam em não aparecer. A frota vê-se no meio de um verdadeiro deserto marítimo, interminável, sem provisões suficientes. A água começa a apodrecer dentro dos tonéis de madeira, tornando-se tépida e amarela. A comida que resta são barris de biscoitos, dos quais só resta farinha comida por vermes, embrenhada em urina de rato. Os marinheiros, para enganar o estômago, comiam serradura com a farinha, e as próprias ratazanas eram consideradas relíquia, vendidas a meio ducado, e vorazmente devoradas. O couro de boi agarrado ao mastro, ressequido pelo Sol e intempéries, foi mesmo imerso em água do mar durante cinco dias, e depois assado em brasa e comido pela tripulação. Entretanto, surgiam os primeiros doentes de escorbuto. As gengivas inchavam, até cobrir os dentes. O sangue escorria pela boca, em dilacerantes chagas, e a garganta fechava, impedindo-os de engolir qualquer coisa, se qualquer coisa também houvesse para engolir. A doença e a fome ia ceifando os homens um a um, sem piedade. E aquele diabólico oceano nunca mais acabava.

Cristóvão Colombo, na sua arrojada travessia transatlântica, partiu com naus novas e arranjadas, tripulação fresca, porão cheio de mantimentos, e durante trinta e três dias navegou, sabendo logo ao fim de duas semanas, pelos gravetos e erva no mar, e pelas aves marinhas, que se aproximava de terra. Fernão de Magalhães partiu com tripulação já fraca e sofrida, poucas provisões, navios em mau estado, e esteve três meses e vinte dias sem ver terra. Mais do triplo do tempo de Colombo, com nem metade das suas possibilidades. Não fosse o tempo extraordinário e quase inexplicável ao longo de todo este tempo, a que se deve o baptismo de “Oceano Pacífico”, e o feito de Magalhães seria hoje uma incógnita, enterrado nas profundezas do mar, nos corpos de uma tripulação nunca sobrevivente.
Foi ao fim destes mais de cem dias que avistaram, finalmente, ilhas ao longe. Ilhas Infortunadas, primeiro, só areia e coral, mas depois, finalmente, terra firme. A primeira que pisaram era a Ilha dos Ladrões, cujos indígenas, primitivos, se divertiam a roubar os navios, para eles novidade, mas aí se abasteceram de coco, salvação para o escorbuto, água, e demais víveres. Partindo, cedo chegaram a uma série de ilhas, parte de desconhecido arquipélago que hoje dá pelo nome de Filipinas. Pisando terra, Henrique, o escravo do capitão, falou com os indígenas e, com surpresa, estes responderam na mesma língua. Nesse momento, a humanidade estremeceu. Pela primeira vez na história do mundo, um Homem saíra de sua terra e, dando a volta completa ao planeta, voltava às origens.
Aqui, Magalhães e sua tripulação aproveitaram, merecidamente, o repouso paradisíaco, no meio de coqueiros e bananeiras, essa árvore que dá figos gigantes, índios amáveis e mulheres prazenteiras. Não eram as Molucas, que Magalhães constatava agora estarem do lado Português do Mundo, mas para o almirante representavam o éden descrito por Serrão, e por ele desejado desde que deixara Lisboa. Os reis índios logo admitiram prestar vassalagem ao Rei Espanhol, perante o poder mostrado pelos recém-chegados através de demonstrações com canhões e armaduras, e cultivava-se uma boa vivência entre ocidentais e autóctones. Cedo se começaram a converter os primeiros idólatras, convencendo-os do amor de Cristo, e incutindo-lhes a missa e a veneração da cruz. A evangelização, efectivamente, logo se propagou, querendo todos, receando represálias, ser baptizados e convertidos. Até um doente, idólatra, foi induzido a queimar as estátuas do seu Deus e, depois de baptizado, mostrou uma milagrosa cura. Tal profusa prática levou à emergência de conflitos, principalmente com um Rei que se recusava solenemente a obedecer à Coroa Espanhola e à Cruz de Cristo. Magalhães, orgulhoso, fervoroso, oferece a armada para, facilmente, derrotar estes atrevidos índios. Desembarcam de manhã cedo, com as reluzentes armaduras, cerca de cem homens e, com água pela cintura, dirigem-se a terra. Entre eles, a comandar, o próprio Fernão de Magalhães. “O pastor não abandona as próprias ovelhas”, afirmara na noite anterior. Subitamente, milhares de indígenas acorrem à praia, armados de fortes setas, arcos e flechas e dardos envenenados. A armadura não serve de nada aos invasores, e, na areia branca, um a um, são massacrados. Num instante, uma seta envenenada atravessa a perna do Capitão. Em vão ordenou a retirada. Cambaleando, tentava lutar, mas os índios, irados, e reconhecendo-o como o superior, desferem-lhe implacáveis golpes e, com ele já caído, fazem sobre ele incidir as cimitarras, enquanto a sua cabeça ainda se esforça por saber se os outros se conseguiram salvar.

“E assim nos levaram a vida daquele que era o nosso espelho, a nossa luz, a nossa consolação , o nosso devoto chefe.”

Assim dita António Pigafetta, jovem italiano, cronista, a bordo, e continua:

“Mas a glória de Magalhães sobreviverá à sua morte. Adornado de todas as virtudes, mostrou sempre uma constância inquebrantável no meio das maiores adversidades. No mar, suportava ele mais privações que a tripulação. Versado como ninguém no conhecimento das cartas náuticas, conhecia perfeitamente a arte de navegar, como o demonstrou dando a volta ao mundo, o que ninguém ousou tentar antes dele.”

Pereceu, então, Fernão de Magalhães, sem sepultura, sem homenagem, numa remota praia das Filipinas. O Homem que vencera o Mundo na sua totalidade, que comandara uma frota contra todas as evidências e imposições do destino e, loucamente, nunca olhou virou costas ao seu quase quixotismo, perdia-se num momento, encontrava finalmente o descanso eterno, o retiro no meio do seu Pacífico, dissipando-se na brisa e na bruma. A sua frota havia de encontrar as Molucas, atravessar o Índico, passar a Boa-Esperança, aperceber-se em Cabo Verde que, qual Willy Fogg, ganharam um dia, e, ao fim 1123 dias de viagem, mais de três anos passados, retornam 18 dos 265 homens que, de Sevilha, partiram. A população aclama-os como heróis, verdadeiros conquistadores do Mar que, talvez não se apercebendo totalmente na altura, sob comando de Fernão de Magalhães, cumpriram um dos mais altos feitos do Homem como espécie, o verdadeiro controlo do Planeta Terra.

Alinhamento:

1. Tripulação do Nicete, a 20 milhas de Portimão. Recolha de Michel Giacometti - Leva, Leva!
2. Nurse With Wound - July 4
3. Baden Powell - Conversa de Poeta
4. James Horner - Winter / Battle
5. Alexandre Desplat - Temptation
6. Hans Zimmer - Journey to the Line
7. Haba Haba Group - Sitgol #2
8. Francis For Coppola, Carmine Coppola - Voyage
9. Dorival Caymmi - É Doce Morrer no Mar