quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

03.10.2011 - Por Este Rio Acima


Já estava regressado das Índias e Orientes, em repouso na sua quinta do Pragal, casado e com duas filhas, na casa dos 60 anos quando mergulhou na árdua tarefa de deixar para a posteridade o registo de uma vida que pouco teve de vulgar, e que muito tem, ainda hoje, para ensinar. Em 1578 termina uma obra composta por 226 capítulos que, desde o seu nascimento ao restabelecimento em Portugal, se lança numa fantástica jornada autobiográfica, desafiando preconceitos, ideias e os limites da civilização, num elogiado estilo literário que estimula, prende e honra a leitura.

A vida de Fernão Mendes Pinto é, hoje, a Peregrinação, que a par de parcos documentos que apenas servem para comprovar a sua existência, é o único registo da sua vida, e esta começa precisamente com o início de tudo. Foi num berço de miséria, pobreza e sofrimento que, algures entre 1510 e 1514, à beira do Mondego, em Montemor-o-Velho, nasceu o protagonista desta história. Desde a nascença foi acompanhado por esta ventura negativa, que o havia de acompanhar para o resto da vida. Encaminhado para Lisboa por um tio, para aí servir uma fidalga, lá se manteve por um ano e meio até um sobressalto que lhe pôs a vida em jogo o ter feito embarcar para Setúbal. Na viagem, o barco foi atacado por piratas franceses, tendo o jovem sido feito prisioneiro e maltratado, até que por fim consegui a libertação. Alguns anos depois, após ter sido ainda serviçal forçado da fidalguia setubalense, decide-se a embarcar para a Índia. Assim, aos onze dias do mês de Março do ano de mil quinhentos e trinta e sete, parte deste reino numa armada de cinco naus em direcção ao ambicionado Oriente.

Chegado à Índia, Fernão Mendes Pinto mergulha num sem-fim de aventuras e desventuras, ao longo de 21 anos em que foi “treze vezes cativo, dezassete vendido, nas partes da Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macálçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos confins da Ásia”. Começou como soldado ao serviço da Pátria, cedo assumindo-se como corsário, e acabando pela primeira vez vendido. Daí, foi sucessivamente libertado e aprisionado, tendo desempenhado papéis de criado de fidalgo, soldado, escravo, agente de negócios, pirata dos mares da china, mercador, médico ocasional do rei do Bungo, vagabundo e embaixador. Percorre incansavelmente todo o Mar Oriental, visita incontáveis ilhas, traça relações com reis e rainhas, e cria inimigos entre ricos e pobres. Incorre ainda em aventuras de batalha naval, com o corajoso António Faria, a personificação do herói, que ao mesmo tempo que mostra ser um grande líder, homem de guerra, estratega, denota igualmente traços de sanguinário e pirata. É sob comando de Faria que Fernão Mendes Pinto tenta saquear a o tesouro de 16 túmulos de imperadores chineses, na ilha de Calempui, incursão que acaba por sair frustrada, colocando Fernão nas mãos dos chineses. Destas passou para a dos Tártaros, e acaba por se ver naufragado numa ilha Japonesa, habitada por ricos fidalgos orientais. Graças à cobiça dos portugueses, estes tentam tomar a ilha, num atentado falhado que teve como resultado vários mortos e a expulsão dos restantes. Regressado a Malaca, o eterno peregrino entranha-se na cordilheira himalaica, onde observa atentamente os ritos e costumes, e envolve-se em confrontos, revoltas, traições e guerrilhas, conseguindo milagrosamente escapar numa jangada, e retornar a porto seguro. Daqui navega para Java, viagem atormentada por naufrágios, canibalismo desesperado, e escravidão, até ser resgatado e enviado para o Japão onde, por fim, graças a alguns golpes de sorte, alcança a riqueza ambicionada. Depois de ainda envolvido em missão evangélica na ordem dos jesuítas, cumpre funções como embaixador de vice-rei até, em 1521, retornar à Pátria sentida.

O incansável relato dos acontecimentos no Oriente em Peregrinação é em todos os momentos uma visão pessoal do autor. É Fernão Mendes Pinto quem escreve sobre ele mesmo, e no texto transparece claramente a impressão psicológica do autor face a todo o rol de invulgares experiências por ele vividas. Ao longo dos 21 anos assistiu a assassínios impiedosos, tanto de uma violência extrema como frutos de diabólicos estratagemas, observou traições bélicas e conjugais, viu reinos a cair e outros a formar-se, travou amizades, naufragou, passou fome e sede, e à medida que o peregrino cumpre esta sua demanda, a percepção que transborda das palavras vai se alterando, amadurecendo, crescendo. O narrador não é um simples observador, mas aquele que efectivamente viveu a fundo tudo o que se passou e, com delicados passos, atravessou uma corda suspensa da vida, miraculosamente conseguindo manter-se em pé e nunca resvalando para as profundezas da morte, que constantemente o encarava, assolava, fazia as carnes tremerem-lhe, o medo tomá-lo e o desespero vir ao de cima.

“Conquistar esta gente terra tão alongada da sua pátria dá claramente a entender que deve haver entre eles muita cobiça e pouca justiça. Ao que o velho, que se chamava Raja Benão, respondeu: Assim parece que deve ser, porque homens que por indústria e engenho voam por cima das águas todas por adquirirem o que Deus não deu, ou a pobreza neles é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela negam a Deus e a seus pais.” A sua obra é assim demarcada por uma forte crítica social envolta na fiel descrição do Oriente, sempre incarnada na pessoa do sábio e sofredor oriental, perosnagens reais ou fictícias tomadas pelo escritor como enunciadores de uma mensagem que ele, individualmente, não podia transmitir. Na verdade, e destacando-se das demais obras suas contemporâneas, a Peregrinação figura os portugueses e restantes ocidentais como os tiranos, piratas gananciosos e sanguinários, ávidos de poder e riqueza, que de facto foram nos anos que se seguiram ao estabelecimento das rotas das especiarias, contrastando com a civilização, sabedoria e sensatez dos povos locais. Indirectamente, Fernão Mendes Pinto critica um culto religioso hipócrita, em que os crentes louvam “a Deus depois de fartos, com as mãos alevantadas e com os beiços untados, como homens que lhes parece que basta arreganhar os dentes ao céu sem satisfazer o que têm roubado”, que “confiado(s) em boas palvras gasta(m) a vida em tão más obras”, que com o nome de Deus na boca cometem atrocidades, desfazem aldeias, violam mulheres, saqueiam templos e assassinam impunemente os humildes donos daquela terra.

Há ainda em Peregrinação uma tentativa inovadora de fundir o estilo literário europeu em moldes asiáticos, enredando a narrativa em descrições apaixonantes dessas terras longínquas, e dos povos que a habitam. A civilização que Fernão Mendes Pinto lá encontrou era de tal modo rica no seu modo de olhar o dia a dia, de viver Deus, de conviver, que tentou incorporar este factor exótico como sendo-lhe intrínseco, distanciando-se do ponto de vista turístico adoptado pela literatura três séculos depois. Fernão Mendes Pinto era, ou tentava, ser um deles, que trabalhava a seu lado, batalhava com ou contra eles, recuperara a muralha da china, navegara no Ganges, e orara no Tibete. A sua ligação era tão forte que, através das palavras da sua obra, o ecritor se demarca e inova não só na história da literatura universal, mas muito também na da percepção da igualdade humana.

Não referida em Peregrinação, mas documentada, está a entrada de Fernão Mendes Pinto para a Ordem dos Jesuítas, após a sua rentável estadia no Japão. Foi aí que conheceu e travou amizade com a personalidade irradiante de Francisco Xavier, então envolto em polémicas com os bonzos nipónicos. O carácter único desta Santa individualidade apaixonou o aventureiro, com quem regressou a Malaca, e enquanto este último se encontrava em Goa, já prestes a partir com suas riquezas, recebe a cidade o corpo do apóstolo jesuíta. Fernão Mendes Pinto fica profundamente abalado com a notícia, e decide-se a adiar indefinidamente o seu regresso, doando grande parte da sua riqueza à ordem, e dando início ao projecto de evangelização do Japão. Aqui, demonstrou um intenso fervor religioso, elogiado pelos padres que o acompanhavam ao Geral da Companhia, na altura o próprio Pe. Inácio de Loyola, e constituiu por certo uma experiência que, divergindo por completo de tudo o que houvera feito, o pôs em contacto com outro tipo de realidades, com um sofrimento semelhante ao da sua juventude, com uma proximidade única com Deus, numa relação que o fez mudar muito da concepção de humanidade.

Fernão Mendes Pinto assume-se assim como um verdadeiro anti-herói, o contraste do peito ilustre lusitano de Camões, um homem que desconhecia o conceito de honra, e com facilidade admitia, e sabia, que era a riqueza que o movia nos seus actos, até à entrada na Ordem. Com magníficas descrições, trouxe à Europa seiscentista o relato fiel do Oriente longínquo, dos hábitos e costumes daquelas gentes de que só levemente se falava, das aventuras e desventuras que os seus compatriotas viviam e provocavam. Editada 31 anos depois da sua morte, Peregrinação cedo se disseminou pelo mundo ocidental, sendo traduzida em seis línguas, e atingindo lugar cimeiro nos anais da história da literatura. A veracidade do seu carácter fantástico sempre foi contestada, principalmente porque era útil aos conquistadores desacreditar a crítica, e até fazendo surgir a denominação jocosa de Fernão, mentes? Minto. Contudo, deve estar presente e constituir um orgulho para todos os portugueses a única personalidade deste homem das artes e da guerra, destemido e aguerrido, e beneficiador de uma rara sorte. Um peregrino que fastidiosamente caminhou pelas vicissitudes da vida de cabeça levantada, desafiando o impossível.

Alinhamento:

1. É o Mar que nos Chama
2. Quando às vezes ponho diante dos olhos
 3. O Barco vai de saída
4. Navegar, Navegar
5. Porque não me vês
6. É como um sonho acordado
7. O romance de Diogo Soares
8. Por este rio acima
9. A ilha
10. Olha o Fado
11. Lembra-me um sonho lindo

Todos os temas compostos e interpretados por Fausto Bordalo Dias em Por Este Rio Acima (1984)

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