quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

10.10.2011 - Os Lusíadas



“Em nome de Deus, amém.

Na era de 1497 mandou el-rei D. Manuel, o primeiro desse nome em Portugal, a descobrir, quatro navios, os quais iam em busca de especiaria; dos quais ia por capitão-mor Vasco da Gama, e dos outros, de um deles, Paulo da Gama, seu irmão, e de outro Nicolau Coelho.”

Quatro eram as embarcações que repousavam naquela manhã do dia 8 de Junho. Cerca de cento e setenta eram os homens. Ao temor da partida, desafiante mergulho no Mar do Destino, levados por correntes onde só Deus reina, afastando-se no tempo e no espaço de uma família que já não sabem bem ser a sua, de uma casa que continuam a alimentar numa ausência etérea, aos portugueses que verdadeiramente se transportam para a desconhecida e monstruosa outra dimensão, somava-se-lhes o peso da mão d’El-Rey Dom Manuel no ombro. Aquele cuja mente assumia o corpo daqueles cento e setenta que partiam, aqueles que ao embarcar na São Rafael, na São Gabriel, na Bérrio ou na São Miguel, deixam de ser homens, indivíduos, e são Portugal, e são vermelho e branco, e a coroa, o orgulho, a Pátria. No leme desta jangada de pedra, deste país viajante, vai a cabeça deste corpo colectivo, de grandes barbas, olhos sábios, experiência, mestria, coragem. Um Homem que sabe pensar, que sabe negociar, que sabe muito bem a sua missão, e nada o impedirá de a concretizar. Ele, um verdadeiro El-Rey deste Portugal, era Vasco da Gama.

Entre choros e lamentos, entre festas e pulos, as quatro naus levam um país que pára naquele instante, que se perde num lapso temporal cuja porta só volta a encontrar aquando do regresso dos heróis. E se eles não regressarem, e se, por obra do diabo, as contas errarem, as previsões falharem, e para sempre no Mar o país que navega se perder, cair no abismo que põe o termo ao Mundo, for devorado pelo azul eterno das águas? Valerá a glória de mandar, a vã cobiça desta vaidade a quem chamamos Fama o risco de perder para sempre um país que a todos pertence? Nas lágrimas das mães que morrem naquele momento, das mulheres que ali enviúvam, nos filhos que se têm como orfãos, estão presentes esses receios, essas mágoas, esses riscos. Portugal saiu do Restelo e lançou-se numa travessia de corda bamba, num jogo com a tesoura que corta o fio da vida, da ténue linha que prende então a Lusitânia.
A bordo, Portugal é esperança, e nada o atemoriza.

“Dura inquietação da alma e da vida
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória Soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!”

“E eu vou, e a luz do gládio dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.”

“Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!"

“Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa -
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp´rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.”

Mas do Horizonte surgia uma negra nuvem, tão grande quanto a visão podia alcançar, e que lenta e pesadamente caminhava em direcção dos navegadores. A nuvem não vinha do céu, nem vinha do Mar, vinha do Espaço, de um Espaço que começava a devorar as naus que nele entrava, transitando para um vortex onde as vagas ribombantes pendiam de fios manobrados por furiosos deuses, onde os trovões surgiam de todas as direcções, e o nevoeiro era preto e espesso, feito de água e cinza, e abria-se com os relâmpagos para mostrar o gigantesco rochedo que defrontava Portugal. O gigantesco rochedo que surgia da nuvem, e que era nuvem carregada, e ventos, e tempestade, e bréu e abismo. E na luz dos relâmpagos viam os marinheiros “morrer com fome os filhos caros”, as suas esposas por cafres violadas, a sua tragédia e fim no mar, “eterna e nova sepultura”, pois este era o fim do Destino tão temido, era o encontro com o limite da humanidade, uma barreira para a divinização, um término numa ousadia e intrepidez que já tinha ido longe de mais, arrastando-os “à côncava do fundo do grande lago da noite cruzando as grades de fogo do Céu e do Inferno até à boca escancarada, esfaimada” daquele Adamastor que lhes perfurava os ossos, que lhes rebentava o peito, e surgia de dentro daqueles olhos baços que viam a negra nuvem, e que criavam o desespero naquele infinito Cabo das Tormentas que não principia nem acaba, e à força quer derrotar o Homem na sua glória, na sua caminhada de ascensão, na sua odisseia para a luz.
Mas a bordo não há marinheiros, há Portugal, e “mais que o monstrengo que lhe a alma teme, manda a vontade que o ata ao leme”.

“Pelejai, verdadeiros Portugueses!”

“Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!”
“Isto, e o mistério de que a noite é o fausto...
Mas súbito, onde o vento ruge,
O relâmpago, farol de Deus, um hausto
Brilha, e o mar scuro struge”

E a luz retorna aos céus, e a calma aos marinheiros, e as vagas deixam de enfurecer os barcos, e os ventos dão lugar à brisa que estende a bandeira vermelha e branca no topo do mastro principal, e anuncia aos céus o nome do herói Portugal.

Com calma continuam a velejar pela costa leste africana, desbravando o conquistado Índico. Sempre avançaram em direcção ao objectivo, e nem as traições e encruzilhadas que entre mouros e indígenas experimentaram, nem o escorbuto e as maleitas que enfraqueciam e desbotavam a bandeira que personificavam, lhes entravou o leme, lhes rompeu as velas, lhes esvaziou o ânimo e vontade.
E assim, com esta calma, começaram a sentir-se enlevados pelo cheiro da Índia, pelo recorte do horizonte, pelo doce e reconfortante fim.

Quando naquele dia de 20 de Maio de 1498 os primeiros raios de Sol banharam a superfície das terras e das águas, fizeram despertar um Mundo Novo, um novo tempo para novos homens.
Estava já quente naquela resplandecente praia de Calecut, com uma leve brisa a estender as velas, a afagar as caras e cabelos dos homens que chegavam, mostrando-lhes o brilho dos olhos. As translúcidas águas eram rasgadas pelos botes que se lançavam ao Mar, sobre rasgos coloridos de peixes e corais. O Sol inundava a Terra com seus fortes raios, recortados nas altas e parcas nuvens, redobrando a auréola que cercava aqueles que chegavam à costa.
Quando o pé de Vasco da Gama desvirginou as alvas areias, não era só o seu peso que sustentava. Aquele pé era Vasco da Gama e Dom Manuel, e os homens que chegaram e os homens que, por obra do Destino, mais cedo partiram, e as famílias que em casa choravam e tentavam viver, e a corte que do seu fado desditava, e o olhar penetrante do Infante Dom Henrique, e a bravura de Dom João Primeiro, e Dom Dinis, o construtor de Naus e Sabedoria, e Nunálvares Pereira, S. Portugal em ser, e o Pai Dom Afonso Henriques, e o Pai do Pai, e o humilde Viriato, a luz que precedeu a madrugada, e Ulisses, o grande criador, e todos os que foram e que haviam de ser.
O peso das centenas de pés que conquistavam a areia era um só gigantesco padrão de sólida pedra, que profundamente gravava o nome e as quinas que no cimo o encabeçavam, as cores da bandeira de Portugal, os nomes do país que conquistou o Mundo, para sempre na História da humanidade.

“Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.”

Alinhamento:

1. Madredeus - Matinal - Existir (1992)
2. Carlos Paredes - Amargura - Antologia: Uma Guitarra com Gente Dentro (2002)
3. Dimitri Schostakovich - IV. Allegro ma non Troppo - 7ª Sinfonia em Dó Menor "Leningrad" (1941)
4. Gustav Mahler - I. Allegro Energico ma non Troppo - 6ª Sinfonia em Lá Menor "Tragische" (1904)
5. Alex North - Spartacus Luve Theme - Spartacus OST (1960)
6. Philip Glass - Closing - Glassworks (1981)
7. Rodrigo Leão - In Memoriam / Odium - Theatrum (1996)


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