quinta-feira, 4 de agosto de 2011

25.07.2011 - Mü


   “O Jardim do Éden não se encontrava na Ásia, mas num continente actualmente imerso no Oceano Pacífico. A criação segundo a Bíblia, com os seus épicos sete dias e sete noites, teve a sua origem não nos povos do Nilo ou do Vale de Eufrates, mas neste agora submerso continente, Mu - o Berço da Humanidade.”

   “No início, o Universo era apenas alma ou espírito. Tudo era ausência de vida - calmo, taciturno, silencioso. A imensidão do espaço era vazio e escuridão. Apenas o Espírito Supremo, o grande Poder Auto-existente, o Criador, a Serpente das Sete Cabeças, deslizava por entre o negro abismo.
“Surgiu-Lhe o desejo de criar mundos, e Ele criou mundos; surgiu-Lhe o desejo de criar a Terra, com seres vivos sobre ela, e Ele criou a Terra e tudo nela.
   “Os sete intelectos superlativos da Serpente das Sete Cabeças deram sete ordens.
   A primeira ordem dizia:
   “Que os gases disformes e espalhados pelo espaço sejam reunidos, e que a partir deles se forme a Terra’.        
   Os gases agregaram-se então numa tempestuosa massa.”
   A segunda ordem dizia:
   “Que os gases solidifiquem e formem a Terra’. Então os gases solidificaram; uma parte exterior, a partir do qual se formaria água e atmosfera, e outra envolvida no novo mundo. A escuridão permanecia e tudo era silêncio, pois ainda nem água nem atmosfera se tinham formado.”
   A terceira ordem dizia:
   “Que os gases exteriores se separem e que deles se formem a atmosfera e as águas” E os gases foram separados; uma parte formou as águas, e as águas estabeleceram-se na Terra e cobriram toda a sua superfície, imergindo-a completamente. Os gases que não formaram água formaram a atmosfera, e:
   “A luz estava contida na atmosfera.
   “E os raios de sol uniram-se aos raios de calor da atmosfera, e deram-lhe energia. Assim houve calor na superfície da Terra.”
   A quarta ordem dizia:
   “Que os gases dentro da Terra se levantem acima da superfície das águas’. E os fogos do submundo elevaram a terra em que as águas assentavam até aparecer, acima da sua superfície, terra seca.”
   A quinta ordem dizia:
   “Que a vida se forme nas águas”. E os raios de Sol uniram-se aos raios da Terra na lama das águas, e formaram-se ovos cósmicos das partículas de lama. A partir destes, nasceu a vida como ordenado.”
   A sexta ordem dizia:
   “Que a vida tome a terra”. E os raios de Sol uniram-se aos raios da Terra na poeira do solo, e daí se formaram novos ovos cósmicos. A partir destes, nasceu a vida como ordenado.”
   E por fim, quando tudo isto estava feito, o sétimo intelecto ordenou:
   “Que façamos o Homem segundo nós próprios, e que nos permitamos dotá-lo do Poder de dominar esta Terra.” Assim, Narayana, o Intelecto de Sete Cabeças, o Criador de todas as coisas no Universo, criou o Homem, colocando-o num corpo vivo e imperecível espírito, e o Homem tornou-se como Narayana em poder intelectual.
   A criação estava completa.”

   Foi Mu que este primeiro Homem de Narayana pisou. Um enorme continente no meio do Pacífico. Nele, planícies infindáveis eram pinceladas de flores-de-lis, verdejantes relvados e luxuriante vegetação tropical, por onde refrescantes riachos encontravam o seu caminho até ao mar. Os férteis vales eram povoados por borboletas e colibris, e, junto à costa, coqueiros e palmeiras coroavam as calmas praias douradas. Foi em Mu que este recém-nascido se estabeleceu, e formou uma sociedade sem igual, com cerca de 64 milhões de indivíduos de pele branca e cabelo louro, tal qual tinham sido concebidos. Tudo era perfeito em Mu, reinando a bondade e a sensatez transmitidas pelo sétimo intelecto na criação.

   Subitamente, de um dia para o outro, a Terra é dominada por um enorme cataclismo. Fogos devoram a superfície, terrivelmente abalada pelos ininterruptos sismos. Num curto espaço de tempo, toda a humanidade se via reduzida a céu e mar.

   Poucos foram os que sobreviveram. Ressurgindo da sociedade imaculada, com a memória dos seus entes queridos soterrados nas calmas águas do irónico Pacífico, viram-se isolados em pequenas comunidades num planeta totalmente inóspito. Nele reinava a fome e a desgraça, e pouco levou até que os primeiros actos de canibalismo e violência tomassem lugar. Nascia assim a maldade no seio da humanidade. Ao longo dos anos se espalharam pela superfície que os recebia, e se foram estabelecendo por esse mundo fora. Os sobreviventes ocidentais, ocuparam a hoje chamada América, construindo as sábias civilizações maia, inca e azteca. Os orientais mais se espalharam ainda, por um maior continente. No vale do Nilo, nasceu a civilização egípcia, na Mesopotâmia a babilónica, no Mediterrâneo a grega e a fenícia. Durante séculos se propagaram mais, ocupando toda a Europa, Ásia e África. As suas peles e cabelos foram escurecendo, conforme as zonas, e a maldade e o pecado foram, progressivamente, crescendo dentro do novo homem. Aos poucos, a nova civilização, a que hoje pertencemos, alicerçou-se. De Mu, restava apenas o sonho, a utopia, a vaga memória, mas a chama da humanidade.

   No seu livro de 1925, Mu, Hugo Pratt envolve Corto Maltese numa misteriosa e intrigante descoberta de Mu. Aqui, os sonhos diluem-se com a realidade, num embrenhado histórico ao longo do tempo e espaço. Há várias portas para uma Mu subterrânea escondida sob a imensidão do mar. Grutas improváveis, templos imersos, ilhas desaparecidas. Entre elas, o Labirinto Harmónico. O som do Universo, exterior e interior, que se apodera de nós e nos guia à entrada do perfeito continente.

   “Um labirinto perigoso cheio de música. Se reconheceres uma melodia, ela transporta-te para a época da sua composição. E como as vibrações que estão na sua origem nunca acabam, elas ressuscitam o espaço do tempo da criação.”

   “...nós recebemos a luz de uma estrela morta a anos-luz de nós. Segundo o mesmo princípio, recebemos ondas sonoras distantes de vários dias, vários séculos, as de um homem morto há milhares de anos...”

   A saída encontra-se “escutando uma outra música, melancólica e longínqua... como uma tarde de quinta-feira. Discreta, misteriosa talvez...”

   Mu encontra-se espalhada pelo mundo, nos gestos dos hieróglifos egípcios, enterrada em códices maias, marcada em pergaminhos trancados nos cofres de templos budistas. Nas ilhas dos Mares do Sul ainda hoje permanecem ruínas de templos onde nunca o Homem chegou, colunas e arcos de pedra imersos ou sob atóis de coral. Numa delas, dezenas de cabeças gigantes olham para as estrelas. Para os Deuses, dizem. A improvável pele branca dos nativos denuncia a sua proveniência. De qualquer forma, é o Mar a nossa origem. Para o seu interminável azul olhamos sonhadoramente, como se vislumbrássemos as raízes de Mu que em nós ainda existem. Mu é o Mar, é o início, é a perfeição, o mistério, Deus e a criação. Ouvindo os nossos sonhos, a distante e serena tarde de quinta-feira, talvez um dia atingiremos o fim do labirinto harmónico. Até porque, como nos ensina Pratt, não temos de escolher entre o sonho e a realidade, apenas vivê-los.

Alinhamento:

1. Eleni Karaindrou - Ulysses' Gaze
2. Stephan Micus - The Music of Stones: Part 1
3. Naked City - Verlaine Part Two "La Bleue"
4. CM Von Hausswolff - The Sleeper in the Valley
5. Erik Satie - Gymnopédie No. 3
6. Sigur Rós - Viðrar Vel Til Loftárása




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